Desculpa a nova interrupção, era o administrador do condomínio. Veio deixar-me o regulamento do prédio porque estou a considerar deixar a cidade e precisarei de um inquilino a tomar conta do apartamento por uma longa temporada. Eu sei, parece algo súbito, mas tem a ver com a história que te estou a contar.
Como já percebeste, acabei por ir com o casal francês ao “Postigo dos Mareantes”. Não te sei explicar porquê, eles criaram um élan irresistível. Desconhecia completamente o bar, escondido por uma porta indistinta das entradas das restantes casas, atrás da qual um longo corredor parece transportar-nos para uma outra era. A cada passo o fumo adensa-se, a decoração transmuta-se e o som insinuante da música aumenta até chegarmos literalmente às luzes no final do túnel.
Ainda não consegui perceber em que lado do edifício fica o espaço: um salão com um bar à esquerda e no extremo oposto um pequeno círculo de madeira sobressaído do soalho com uma pequena bateria e outros instrumentos musicais, mesas redondas iluminadas em tons amarelo e vermelho por candeeiros de teto Tiffany e cercadas de cadeiras com estofos bordô puídos no rebordo, tudo cercado por uma ornamentação excessiva de espelhos em cornucópias, cartazes de concertos de jazz e pinturas escurecidas pelo fumo que mal deixam entrever o papel de parede pardo deixado à vista nos interstícios. Todas as mesas estão ocupadas, há gente em pé a conversar com outros sentados e no ar apenas se ouve falar francês.
«Ici!», ouvi gritar e identifiquei um homem sentado a acenar.
Só então me apercebi de que não sabia os nomes dos meus companheiros. Cadeiras foram mexidas e fez-se espaço para nos juntarmos a três novos parceiros, um homem elegante de fato escuro e camisa branca desabotoada no topo, outro um pouco mais baixo de cara redonda e cabelo escuro e uma mulher de perfil grego e longos cabelos negros com olhos intensos a perscrutar em redor.
O homem de fato preto levantou-se e cedeu o lugar à mulher de turbante junto do outro homem.
«Fica com o meu lugar. É a minha vez de ir tocar.»
«Onde está o Miles?», perguntou o meu guia, mantendo-se em pé.
«A milhas.», suspirou a mulher de perfil grego.
Mal me tinha sentado, um trio de jazz começou a atuar com o homem de fato de preto no trompete.
«Ele não toca nada mal e escreve razoavelmente também, mas ninguém lhe dá crédito», gritou o homem de óculos grossos, debruçando-se sobre o meu ombro. «Faz certificações como engenheiro e, contudo, ninguém lhe certifica o trabalho». Riu-se da sua piada.
«Mas tu certificaste-lhe a mulher», disse a mulher de perfil grego.
«Juliette, se vamos falar de certificações, para comparar a lista das tuas e das minhas precisamos de mais do que esta mesa»
«Je sais… Parlez moi d’amour.»
Riram-se ambos e a mulher sorriu para mim e começou a cantar ao som de uma nova canção iniciada pelo trio.
«Não quer dançar?», convidou-me a mulher de turbante. Outras pessoas levantavam-se nesse momento também. Anuí, a pensar como é se dançaria aquele ritmo.
Ela pousou suavemente uma mão na minha cintura e colocou a outra no meu ombro.
«Não se preocupe, siga as minhas ancas.»
Riu-se para mim e dançámos sob o olhar atento dos dois homens.
«Não lhes pode ligar, eles são homens. Não nasceram assim, mas foram construídos assim pela sociedade.»
«Seguem o projeto pessoal geral?» perguntei, a tentar o humor. Ela sorriu.
«A existência não acontece isolada de tudo o resto. É difícil fugir ao olhar dos outros, que nos transpõe de voyeurs para objetos. E você sabe bem como nós somos tornadas objetos por certos olhares»
Rodou ligeiramente os nossos corpos e fez um sinal com a cabeça em direção ao homem de óculos grossos.
«Ele diz a brincar que os outros são o inferno. Em parte, são: os vizinhos de mesa ou de casa, os colegas de trabalho, os desconhecidos nos transportes… Contudo, existimos no mundo com os outros e não podemos, nem devemos evitá-los. Os parâmetros da nossa liberdade individual exigem a liberdade do outro. Não podemos impor a nossa liberdade aos outros.»
Parou por breves instantes a avaliar a minha face, fez um enorme sorriso e reencaminhou-me nos ritmos da dança.
«Nós vivemos diferentes desigualdade e uma delas é entre nós e eles. Mesmo quando nos é permitida uma certa equidade, o preço que pagamos é termos de nos tornar neles e imitar o seu comportamento. Igualdade não significa sermos o mesmo e muitas mulheres proeminentes da vida pública ainda cometem esse erro, arrastando outras neste equívoco.»
Aproximou a sua cabeça, escondendo na minha face a sua boca e segredou-me ao ouvido com um sopro quente.
«On ne naît pas femme: on le devient. A construção social da feminilidade serve apenas os propósitos de estruturas patriarcais para nos depreciarem e nos fazerem o Outro, o segundo, o que vem atrás e arruma e limpa ou que fica atrás a preparar o regresso. Não um agente de ação, mas um objeto privado dessa liberdade de agir, de existir.»
Afastou-se ligeiramente, inclinando lentamente a cabeça para um e outro lado ao ritmo da música, segurou-me pela mão erguida com se fosse fazer-me rodar sobre mim mesma e aproximou-se de novo.
«Eles procuram oprimir-nos na nossa corporalidade, fazer-nos objetos com funções reprodutivas, maternais, domésticas, sexuais; querem privar-nos daquilo que podemos fazer com os nossos corpos.»
A mão assente na minha anca subiu ao meu ombro junto ao meu corpo, roçando o antebraço no meu seio e despertando o mamilo. Voltou a segredar-me ao ouvido.
«Olhe para eles e repare como nos observam, como se deleitam a objetificar a nossa interação, o puro prazer do voyeurismo. É só nestas alturas, minha querida, que nos deixam explorar os nossos corpos, mas sempre como objetos do seu olhar.»
A música terminou, mas mantivemo-nos unidas como se a nossa dança continuasse.
«Muitas de nós vivem felizes porque não têm de tomar decisões e são mantidas no mundo privilegiado das crianças, sem a angústia que a existência nos provoca. Contudo, não existem verdadeiramente, não têm autonomia e as pequenas “liberdades” que experienciam são um recreio para entreter crianças e deixá-las fazerem o que querem num espaço controlado. Não é algo que elas escolham, é algo que lhes é imposto»
Afastou o seu corpo do meu, fez um enorme sorriso e enlaçou-me o braço, encaminhando-me de regresso à mesa.
«Acho que já falei o suficiente para uma noite. Vamos, temos bebidas à espera.»
O homem de fato preto juntou-se.
«Muito bem, Vernon. Deixaste-nos encantado.», felicitou a mulher de perfil grego.
«Um elogio de uma chanteuse como Juliette deve encher-te o coração»
«Ah, já mo arrancaram. Contudo, o que seja que ficou no seu lugar recebe o seu elogio com gratidão. Talvez um dia possas dar voz a uma das minhas canções.»
«Certainement. Je suis pas snob para te cantar, Sibor.»
Risos.
«Ele gosta de brincar com os nomes e nós fazemos-lhe o mesmo», explicou-me a mulher de turbante.
Uma fonte de absinto foi colocada na nossa mesa e depois distribuídos copos, colheres e uma taça com cubos de açúcar. Em menos de nada o ambiente do salão tinha mudado, o tom pastel e avermelhado deslizara para um verde amarelado e a minha cabeça começou a rodar.
«Cuidado para não cair no absismo.»
Risos.
«Antes isso que o absintismo.»
Novos risos. O humor circulava entre eles como num jeu de paume em círculo.
O homem da cara redonda levantou-se e despediu-se. Disse-se cansado e olhou para a mulher de turbante. Depois olhou para mim e abandonou a mesa. A mulher de turbante sentiu a minha estranheza.
«Ele está num longo processo criativo e não tem energia para os nossos jogos.»
Acendeu um cigarro, soltou uma nuvem que se enrolou sobre si própria ao subir e desvanecer-se e cerrou a boca numa linha séria.
«Ele está a tentar criar conteúdos de vídeo online, mas sem sucesso. Teve umas dificuldades técnicas porque não conseguia carregar um vídeo com mais de 9 horas. Depois, quando o dividiu em partes e o colocou online, ficou surpreendido por ninguém o subscrever. Estas gerações não querem coisas sérias e longas. Dê-lhes dois minutos sobre como fazer um creme de beleza caseiro com um vegetal qualquer e toda a gente vê; mostre dois indivíduos a fazerem as mesmas caras de parvo durante 5 minutos e toda a gente subscreve; ofereça-lhes nem que seja 1 minuto de uma reflexão séria sobre a barbárie e ninguém lhe pega.»
O ambiente na mesa mudou. De repente, foi como se todos se tivessem lembrado dos seus projetos pessoais. O homem de fato preto e a mulher de perfil grego saudaram-me à distância. O homem dos óculos grossos beijou-me a mão.
«Lembre-se: a existência precede a essência.»
A mulher de turbante abraçou-me e beijou-me na face três vezes.
«Seja generosa. E não se esqueça de nós, não se esqueça de quem nós somos.»
E dei comigo no exterior, sozinha na rua dos Mareantes.
Espera, o Silva está a ligar-me. Já te escrevo.
Corações arrancados
O músico francês cujo coração foi arrancado numa sala de cinema. Contaram-me que ele morreu quando viu a adaptação de um romance que tinha escrito.
A mulher de turbante
A existência humana apresenta-se como um desafio a todos os indivíduos e ganha dimensões mais difíceis de superar para aqueles que não pertencem à categoria masculina. Libertar-nos da imposição de uma essência imposta à nossa existência passa também pelo fim dos papéis atribuídos aos géneros e das restrições àqueles que não querem representar esta ou aquela personagem
A mulher de perfil grego
Não cheguei a escutar ou vivo a mulher de perfil grego, mas recebi mais tarde alguns dos seus álbuns e também alguns filmes em que ela entrou.