Uma conversa peripatética

Apr 1, 2024

Cheguei há pouco a casa depois do encontro com o Silva. Como costumam dizer, voltei ao “local do crime”. Ele estava à minha espera na ”Adega dos Frades”, mesmo em frente do antigo salão de tatuagens.  Sentei-me a relatar ao Silva tudo o que sucedeu e a lamentar o quanto perdida me tenho sentido nos últimos meses, sem rumo, mais encalhada do que à deriva.

«Se vais estar a usar metáforas náuticas, tens de saber que podes estar encalhada por causa da maré. Quando mudar a maré, desencalhas, filha.»

«Não é assim tão fácil. E, se calhar, mesmo com a mudança da maré, encalho num cabeço logo a seguir.»

«Pois, são os escolhos. Ainda estamos a falar metaforicamente, não estamos?»

«Não sei. Sinto um vazio de sentido, é tudo. E quando olho ao espelho, não me reconheço. Nada daquilo que faço me parece real, é como se tivesse perdido o contacto com a minha identidade.»

«Ah, rapariga, deves andar a ler muita palha na internet. Não tarda muito, estás a papaguear que cada um de nós está neste mundo para descobrir o seu verdadeiro eu, o seu verdadeiro talento e a maneira única e pessoal de o expressar.»

Fitou-me a medir-me a expressão, o olho são com a húmida tranquilidade da velhice, o olho cego azulado virado para dentro em permanente introspeção, e sorriu. «Estás com ar de quem não comeu nada o dia todo. Vamos tratar primeiro desse vazio no estômago.» Era um sinal de que a conversa ia ser longa.

Fez uma série de gestos para alguém ao balcão nas minhas costas, encostou a bengala na parede para fazer espaço na pequena mesa e continuou. «No meu tempo, os livros de autoajuda tinham o objetivo de nos transformarem em algo diferente de nós próprios, como “ser mais sociável” ou “pensar positivamente”. Agora, os autodenominados “life coaches” fazem dinheiro a dizerem-nos que precisamos de descobrir algo dentro de nós próprios, uma espécie de parte quase completamente esquecida, e que, quando a redescobrirmos, iremos sentir-nos autênticos.»

Olhou à volta e apontou com o rosto para eu fazer o mesmo.

«Esta malta pode estar aqui todos os dias à procura da sua dose para aliviar a solidão, mas se quisessem saía-lhes mais barato comprar a bebida no supermercado. Aquilo que vês é o resquício de uma identidade social ligada a algo maior do que nós próprios, aquilo a que os sociólogos chamam de uma extensão do Eu, uma experiência do ser com um forte sentido de pertença.»

Olhou por cima do ombro.

«Conheces o barbudo que mora ao lado da Anita, no 1.º andar?», perguntou-me em tom mais baixo.

«O misógino que diz que “as mulheres só se mexem a toque de caixa”?»

«Ele é uma fruta de outra época. O clima histórico influencia as pessoas, minha amiga. Agora é que toda a gente julga que há morangos todo o ano.», disse com um tom de sarcasmo. «Mas isso não interessa. O barbudo – chama-se Fritz e, claro, é alemão – o Fritz é um tipo interessante e no outro dia, à conversa, explicou-me como é que o isolamento criado pela sociedade moderna nos faz sentir mortos, apenas objetos. Como dizia o poeta, nós, as massas, vivemos “lives of quiet desperation” porque não temos ninguém com quem comunicar. E esses projetos de descoberta do nosso autêntico Eu acentuam o isolamento porque, como disse um outro escritor, aquilo de que o ser humano precisa é “only connect”.»

Senti movimento atrás de mim e ajeitei o rabo no banco de madeira, aqueles que são desconfortáveis e indecorosamente pequenos.

«Aqui estão as bifanas e os traçadinhos, Silva. Bem me parecia que eras tu, estava a reconhecer-te pelas costas… Estás boa?». Era o Manel, o filho do dono da Adega. Sorri timidamente. Desde a nossa infância que o Manel insistia em “conquistar” a minha atenção. Pelo menos, conseguia conquistar o meu estômago, as bifanas da Adega eram as melhores da cidade.

«Ah, isto é que é felicidade, ahn?», exalou o Silva com uma dentada. «Tenho de morder com cuidado, a ver se não salta a placa…»

Mastigámos em silêncio alguns segundos.

«Sabes», continuou, «a felicidade é vista hoje em dia como um sentimento de bem-estar, qualquer que seja a causa. O Fritz diz que, para a maior parte das pessoas, a felicidade é o prazer. Vivem todas para o hedonismo. Provavelmente, ele próprio o faz. O prazer da comida, por exemplo… Estão mesmo boas estas bifanas.»

 Demos mais umas dentadas e uns goles de traçadinho.

«A nossa sociedade promove a ideia de que possuímos a liberdade para realizar essa felicidade. Infelizmente, mais de metade da população mundial não tem liberdade económica e outros nem a liberdade social ou política, como lhe quiseres chamar, para se moverem sequer em direção à felicidade. E como as pessoas foram “magicamente” transformadas em consumidores, tentam saciar temporariamente essa vontade de bem-estar em ciclos de desejos impossíveis de satisfazer continuamente, lutando contra uma sensação de vazio e um desespero silencioso. É um círculo de consumo que irá não só corroer a sociedade, mas também esmifrar a Natureza.»

«Essa visão é demasiado simplista, Silva. Há outras coisas que fazemos na vida.»

Terminámos as bifanas e as bebidas.

«Talvez. Anda, vem dar uma volta comigo.»

Deixou o dinheiro preso sob o prato vazio das bifanas, pegou na bengala e saiu curvado no passo lento que eu conhecia desde sempre. Seguimos pela Major Afonso Pala até ao Terreiro de Santo António e parámos defronte da capela.

«O mundo de cada pessoa cresceu demasiado. Cada indivíduo tornou-se uma cidade. Há um excesso de contactos, de informação, de estímulos e ainda não tivemos tempo para nos adaptarmos a viver nesta nova condição. Ao mesmo tempo, estamos cada vez mais desconectados da natureza e da comunidade e quase todos os estímulos são virtuais e promovem uma interação à distância.»

Apontou para a capela de Santo António e parou a olhar para a fachada do edifício, com uma concentração no olhar como se estive à procura de algo na memória. «Havia um armazém de batatas, feijões, castanhas, mesmo em frente da capela. Pão e circo. Batatas e religião.» Virou costas à capela e seguimos

«A religião falhou, tornou-se num negócio de terapia transcendental. São centros de ajuda espiritual, fabriquetas para extorquir dinheiro aos que caíram na desgraça. Graças a Deus, ainda há muita imunidade a esta doença do além».

Cortámos para a Antão Girão e seguimos até à Praça de Bocage.

«Os românticos», retomou, a apontar para a estátua do poeta «tentaram recuperar o sentido de unidade que tinha sido desfeito com o início do Iluminismo. Como se a sociedade tivesse corrompido o bom selvagem com a reflexão racional e o método científico, não restando outro caminho senão o da reconexão com as emoções para nos elevar a um estado transcendental. Não estavam muito longe do alvo, esses hippies, ao pensarem que cada um de nós tem a habilidade de se recriar como objeto de arte, mas continuaram a insistir num individualismo egotista.»

O nosso rumo peripatético prosseguiu até à “Estátua das Musas”, um grupo de mulheres dispostas em círculo num duche público a exibirem a sua nudez. Fiquei curiosa à espera da explicação do Silva.

«Já no século passado, os precursores da moderna psicologia referiam a existência de diferentes Eus. Não nos mostramos do mesmo modo aos nossos filhos, aos nossos colegas e aos nossos amigos. Contudo, há alguns pensadores que foram mais longe e não só sustentaram que somos o produto de uma construção cultural, como pulverizaram completamente a nossa identidade em fragmentos, construídos ou destruídos pela nossa sociedade. Há um rapper francês chamado Fu-Ko, obcecado com manicómios, que nas suas letras fala do discurso de poder produzido pela sociedade para nos dominar e oprimir e nos moldar aos interesses do próprio funcionamento social.»

Seguimos para o lado nascente da avenida, até nos sentarmos num banco defronte do Fórum Luísa Todi.

«A analogia do Eu como uma narrativa é, na minha opinião, a mais satisfatória das diferentes definições. Por um lado, é através de narrativas que construímos sentidos e desde os tempos das fogueiras que a explicação do mundo se faz através de histórias. Não estou a defender um regresso ao período pré-filosófico das mitologias; pelo contrário, temos de evitar, a todo o custo, voltar a essa caverna de dogmas e preconceitos que teimam em regressar através do discurso de inúmeros evangelistas. Estou a referir-me à dimensão pessoal da narrativa individual que cada um faz da sua vida, em que somos simultaneamente narradores e matéria narrada, dando à nossa existência coesão e coerência. Nós somos criaturas no espaço e no tempo e o presente é vivenciado não como o verdadeiro tempo, mas como o contexto da ação onde se interseccionam o passado e o futuro. E essa ação, minha filha, quando olhas para o palco da vida, como o desse teatro aí em frente, essa ação tem lugar num cenário cultural e entrecruza-se com as narrativas de outros atores. O nosso Eu não está escondido dentro de nós à espera de ser resgatado, está na história que contamos do nosso passado e naquilo que tentamos fazer com o nosso futuro.»

Suspirou cansado, segurou a bengala entre as mãos, contemplou o céu e depois os meus olhos.

«Não procures fazer sentido de tudo isto, porque mesmo no momento da nossa morte, prematura ou esperada, nada garantirá que as nossas vidas façam sentido. Nós somos atores, espíritos que se dissipam em ar imaterial, dizia o bardo. E como a insubstancialidade deste banco, daquelas árvores, do próprio céu que nos cobre, tudo se dissolverá sem deixar rasto. Somos da mesma matéria dos sonhos e as nossas vidas desvelam-se num sono».

As mãos do Silva pousaram sobre as minhas, o frio dos ossos a perpassar pela sua fina pele. Soltou umas leves gargalhadas que lhe chocalharam o frágil corpo e olhou-me fixamente, um olho húmido de compaixão, trocista o outro azul de cegueira.

«Já chega de conversas de velho. Vai à tua vida. Narra a tua história.»

Fiquei a olhar para ele com um olhar perdido.

«Não te preocupes. Tenho uma ideia que poderá ajudar-te. Deixa-me falar com uma pessoa e amanhã telefono-te.»

Levantei-me e logo uma voz clamou a atenção do Silva.

«Idalécio!»

Deixei-o com os seus amigos e acelerei o passo de regresso a casa. Não sei qual é o plano dele, mas ele tem razão: tenho de me narrar e ser algo mais do que apenas uma personagem na história de outras pessoas.

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Tatuagem

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.