Regresso do passado

Apr 1, 2024

Tenho mais novidades, mas já tas conto. Deixa-me terminar primeiro esta longa história; já percebeste que foi uma noite bem estranha. Estava eu a tentar compreender como tinha ido parar ao meio da rua vindo de outra porta na Rua dos Mareantes quando ouvi uma voz familiar atrás de mim.

«Olha quem está aqui, estás boa?»

Virei-me e dei de caras com o Manel dos Frades e o resto da cambada: o Mac, sempre perfumado para apagar da sua memória o fedor dos hambúrgueres; o Barão, na sua aristocrática elegância europeia com uns sapatos lótus; e o Mr. T “himself”, chegado de Cebolas de Cima na tourné da sua banda de heavy-metal.

«O que andas a fazer aqui?» perguntaram quase em uníssono no tom de peça teatral infantil.

«Ah, bom, eu estava lá dentro, no “Postigo dos Mareantes”, o bar francês aqui nesta porta.»

«Nesta porta? Estás a gozar? Ali mora a D. Otília.», disse o Manel.

«Não mora nada, eu já te mostro.»

Saltaram os quatro a impedir-me de bater à porta.

«Estás maluca? Já vistes as horas? Já passa da meia-noite!»

«Estou a dizer que não mora ali D. Otília nenhuma.»

«Tu fumaste alguma coisa… Ou tomaste alguma coisita?…», sorriu o Mr. T com visível curiosidade.

«Não fumei nada, tu sabes que nem fumo. Só bebi um pouco de absinto.»

«O melhor é nós levarmo-la a casa», ponderou à distância o Barão, a tentar livrar-se da chatice. «Temos de ir trabalhar e a Fábrica espera por nós.» acrescentou, soltando um riso de miúdo.

«Fábrica? Trabalhar?»

«Ele quer dizer a discoteca.», explicou o Mac.

«Mas isso fechou há séculos.», observei.

«Ele está enganado, nós vamos ao Círculo.»

«Mas o Círculo também já não existe. Não me digas agora que vão ao Outubrus? Ao Café com Estória? Mas o que é que está a acontecer?!»

Esfreguei os olhos, abri-os e tudo estava na mesma. O Mac colocou o braço por cima dos meus ombros e pôs-me a andar com um suave balanço.

«Anda, nós levamos-te a casa.»

Seguimos até à rua do Miradouro, passámos a Rubi, virámos na esquina da pastelaria da Bia – pareceu-me ver do outro lado jornais pendurados na papelaria dos Jovens e ouvir o som de colheres a limparem o fundo das taças de gelado na Valenciana. Deixei-me estar calada e comecei a recear que alguém tinha deitado alguma coisa na minha bebida. Passámos o Batista – há quantos anos foi? – e virámos para a Major Afonso Pala.

«Mas eu já não moro aqui.»

Não me ligaram nenhuma. Continuámos rua adentro – a peixaria da Fernanda, o snack-bar Girassol, a casa de móveis do Ti’ Jaquim – e parámos entre o café do Mr. T e a Adega dos Frades.

«Pronto, estás em casa.»

«Esta já não é a minha casa.»

«Esta será sempre a tua casa. A tua memória é a tua narrativa do passado e enforma a construção da tua identidade. A tua essência pode partir da tua existência, mas a tua identidade é a memória da tua experiência, a narrativa que, ao longo do tempo, refazes através da tua existência. E esta casa é a primeira marca da tua identidade.»

Olhei para o edifício e senti tudo. O cheiro de peixe a assar na tasca com as portas de “saloon” de cowboys – eram turquesa? – a taberna com matraquilhos gigantes e o cheiro a vinho e a carne frita e o chão com serradura e caricas da Fruto Real com decalques do Homem-Aranha. E entre as duas tascas, na porta do meio, as escadas íngremes, a memória de as subir aos ombros vigorosos da juventude dele – estava numa foto, não estava? – e ela, no topo das escadas, em pose de estrela de Hollywood, a desvelar com a curta saia o perfil atrativo das jovens pernas – outra foto, mas não a cores. Subi as escadas e percorri todas as suas salas e todos os seus corredores, uma a uma, um a um, como o tinha feito há muitos anos, pela última vez, a chorar uma despedida inesperada e apressada, a tentar agarrar o máximo de memórias e a encher o coração, quase até rebentar, dos sentimentos e das emoções ali vividos. Tinha 16 anos. Fosse agora morreria ali mesmo, o coração a romper pelas costuras e cicatrizes mal curadas com o esforço de o tentar encher com tanto sentimento.

Aos poucos, a textura das figuras de todos eles, a solidez das divisões da enorme casa, tudo se esfumou fantasmagoricamente. Estava de novo na rua e ouvi um pigarro áspero. A cambada tinha desaparecido e agora estava um indivíduo alto, magríssimo – as calças de ganga justas comprimiam a ossatura sem revelarem uma única camada de carne entre elas – com cabelos lisos, longos e escuros a tresandarem ao fumo de erva, os olhos janados a fixarem-se em mim preguiçosamente. Aclarou novamente a garganta e disse.

«Quando quiseres, podemos começar.»

Começar o quê? Fiquei com a certeza de estar a alucinar.

«Quem és tu?»

«Sou o Janus.»

Claro, fazia todo o sentido.

«Tenho tudo pronto, até o desenho da tatuagem.»

Aproximei-me sem medo, certa de que nada daquilo era real.

«E qual é o desenho?»

Tirou um papel amarfanhado do bolso de trás e mostrou-me um esquema em árvore com algo rabiscado no topo. Olhei para ele, olhei para o esquema e novamente para ele.

«É a árvore da vida.»

«A sério? Parece-me bem morta.»

Posso gozar com as minhas alucinações como bem entender, pensei.

«Nem por isso. É uma representação de como de um ponto se evolui para outro, de como o que é o passado se adaptou ao presente. E pressupõe a adaptação do presente ao futuro.»

Fiquei em silêncio a pensar em tudo o que tinha acontecido até então. Ele entrou no salão de tatuagens improvisado na outra esquina e eu segui-o.

«Senta-te aqui. Onde queres a tatuagem?»

«Não sei.»

«Dói menos no topo das costas.»

Menos visível, mais pessoal foi o que pensei.

«Parece-me bem.»

«Tens de tirar toda a roupa da parte de cima»

Mau, esta alucinação está a armar-se aos cágados. Despi-me e sentei-me hirta.

«Tens de te inclinar para a frente um pouco», disse, empurrando uma omoplata com a palma da mão e direcionando à frente o peito com a outra.

«Olha, tu voltas a apalpar-me as mamas e eu espeto-te essa agulha pelo nariz acima.»

Ele olhou impávido para mim.

«Desculpa.», disse-lhe a seguir num tom mais calmo. «Tens de me avisar com essas coisas, eu sou um pouco sensível a abusos.»

«Vamos tentar outra coisa. Senta-te ao contrário naquela cadeira com rodas.»

Ele pressionou a alavanca e eu fiquei inclinada para a frente, suportada pelo espaldar da cadeira.

«Confortável.»

«Sim.»

Parecia um daqueles tipos no ginásio a trabalhar os bíceps, menos a cara inchada de prisão de ventre.

O som da máquina a operar ecoou suave na sala de paredes nuas de cal branca e a gentil dor da agulha a penetrar na pele deixou-me progressivamente mais e mais dormente. Fechei os olhos e senti o meu corpo a atravessar o espaldar da cadeira e a passar pelo soalho frio de mosaicos e a sua base rugosa de cimento, a terra compactada das fundações com restos da antiga construção à mistura, antigos utensílios domésticos, um esqueleto de mãos e pés atados numa fina corrente enferrujada envolto nas partículas de uma mortalha de lençóis, mais utensílios domésticos, os restos de uma outra construção, pedras de uma muralha colapsada, ossos de peixes e utensílios romanos e, por fim, a areia salgada do mar.

Acordei com o sabor de maresia na boca, debruçada na minha cama, a cintura a suster-me a queda. O quarto já estava aquecido pelo sol, por isso percebi ser já meio da manhã. Forcei a moleza do corpo a arrastar-se em pequenos passos até me sentar na sanita, depois ergui-me em esforço de halterofilista e lavei a cara com abundante água fria. Quando vi os meus olhos no espelho, comecei a recordar a noite anterior e lembrei-me da tatuagem. Virei-me de costas e espreitei sobre o ombro. A tatuagem lá estava! Viste a imagem que te enviei? Agora, o problema nisto tudo – se fosse só um – é que a tatuagem foi tingida por um artista janado que não existe. Não sei se te lembras, mas a casa de tatuagens que havia em frente da adega fechou há uns dez anos! Como é que isso é possível? Começo a questionar o que foi real e o que foi imaginação… Não me lembro de como cheguei a casa. Tudo o que te contei anotei o mais depressa possível com medo de me esquecer de algo e para ter a certeza de que não tinha sido vítima de nada. Passei o resto do dia a pensar, dei voltas na casa a olhar para cada recanto, a medir decisões.

Acabei por telefonar ao Silva. Sabes que ele é um dos meus guias desde criança, daqueles com quem partilho as minhas dúvidas e ideias. Ele ligou-me há pouco e disse-me que tem uma proposta para mim. Vou ter com ele daqui a uma hora. Não sei o que me espera, mas sinto que vou ter de sair da cidade. Talvez esteja apenas a querer fugir de algo, possivelmente de mim própria, mas sinto que algo diferente vai acontecer, que vou subir um galho da minha árvore. Depois conto-te as novidades que o Silva me der.

Ao som das freiras da compaixão

Da Ribeirinha do Sado à Fábrica com viagem pela TGV, as noites sadinas eram ricas de rock industrial.

Educação civil

Ao som dos helicópteros, abria-se a pista de dança na Arrábida e todos voavam com as gaivotas. Só ficaram os tijolos da Seagull.

As matinés dos "Dancing Days"

As primeiras entradas em discotecas eram, para muitos, feitas nas matinés do “String Fellows” e da “Leo Taurus”, onde a playlist era a imagem de marca de cada espaço.

Tatuagem

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.