Há uma calma hesitante quando a noite desce sobre o mar, o resquício de uma memória da infância quando as luzes do quarto eram apagadas pelos meus pais e eu ficava no escuro atenta às ténues sombras formadas pela luminosidade a marejar pelas frinchas da porta. O coração começava a bater mais acelerado com os sentidos aguçados a tentarem detetar ruídos e flutuações na penumbra, mas depois acalmava, segura de que a altura da cama e a espessura dos cobertores eram uma proteção suficiente para qualquer ameaça a vaguear no quarto. O mar noturno é um quarto escuro cuja assustadora imensidão revela o isolamento do indivíduo.
Não te quero assustar com estas palavras, apenas expressar como é intenso estar sozinha ao leme do barco rodeada pelo vazio de referentes visuais. O constante movimento das ondas torna impossível situar-me no espaço e, apesar de estar rodeada de matéria, nunca senti deste modo a possibilidade do nada.
O capitão entregou-me o primeiro turno de vigia até às 3h00 e está a descansar no seu camarote. A rota está traçada e só tenho de manter o rumo; o vento e a ondulação não oferecem cuidados, por isso aproveitei para te escrever esta primeira mensagem, que enviarei mais tarde quando estivermos em terra.
Provavelmente ainda estás a tentar perceber porque estou a fazer isto. Eu também me questionei várias vezes antes e depois de deixarmos o porto de Setúbal. Na verdade, eu sempre me questionei para onde ia e por onde andava. Talvez a resposta esteja nas divagações do nosso skipper.
«Há um momento na vida de um homem», hesitou e sorriu, «e de uma mulher também, em que o olhar começa a demorar-se demasiado no passado. Sem dar por isso, passa mais e mais tempo a contemplar o que aconteceu. Essa inércia é o princípio da morte.», pontificou o capitão, num tom um pouco histriónico, quando estávamos a carregar as provisões para o barco.
«Mas é importante contemplar o passado. Faz parte do processo de reflexão sobre a nossa vida», retorqui com um sorriso.
Ele parou, pousou as caixas no chão e olhou para mim de alto a baixo.
«Já vi que temos uma filósofa a bordo. Sócrates disfarçado de mulher? É verdade que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. A maior parte das pessoas está enterrada até ao pescoço em areias movediças e não vê senão o que está imediatamente à frente do nariz. Muitos, muitos mesmo nem se dão conta disso e o momento alto das suas vidas é regressarem do centro comercial com um plasma de sessenta e tal polegadas para o pregarem na parede na sala.»
«Nem toda a gente é assim. Cada vez mais pessoas são ativas, fazem coisas interessantes no seu tempo livre.»
«Esses são os outros, esbracejam e esbracejam e enterram-se ainda mais na areia em viagens a locais exóticos ou atividades radicais à procura de emoções. Estão contaminados com os slogans modernos de “viver a vida” e não se apercebem de que se tornaram hedonistas egoístas. Para mim, essa gente vive no materialismo das memórias. Passam o tempo a colecionar selfies para mais tarde recordarem, quando estiverem inertes, e poderem contemplar o passado e dizerem que viveram verdadeiramente.»
Não insisti e deixei-me estar silenciosa a olhá-lo enquanto ele pegava novamente na caixa, a ver para onde ia aquele cinismo de quem julga pairar acima das areias movediças.
«Estar vivo não é apenas ser ativo e fazer coisas interessantes e diferentes a cada dia ou esgravatar nos nossos confins para desenterrar um Eu a tresandar a autenticidade. Estar vivo é estar em sintonia com a nossa natureza e com a sinfonia que orquestra o nosso tempo.»
Olhou sobre o ombro para o barco, fez uma flexão de anuência com a cabeça e voltou-se novamente para mim a fixar-me nos olhos.
«Muitos partem para fugirem daquilo que são nas suas rotinas, mas a verdade é que não podemos escapar a nós próprios… nem às tragédias que nos marcaram a pele. Eu parto nesta viagem para reencontrar a minha narrativa de vida, saber quem sou agora e como posso escrever o meu futuro. Podia fazer esta viagem mentalmente, sentado em casa, mas a minha natureza impele-me a encontrar-me no mar. Aquilo que temos de fazer é perguntar a nós próprios como é que podemos escrever as nossas narrativas, com todas as mudanças que uma boa história tem, e que versos acrescentar à poderosa encenação humana. Não se trata de encontrarmos uma identidade autêntica, até porque a maior parte de nós somos multifacetados. Bom, todos menos o Cavaco Silva.»
Riu-se e depois seguiu com a caixa para o barco.
«E enquanto pensamos sobre a vida, podemos ir carregando as caixas.», ordenou-me por cima do ombro. «Não precisamos das mãos para pensar.» E prosseguiu com o carregamento a assobiar qualquer canção a rematar o fim da conversa.
Pensar, pois. Não tenho feito outra coisa desde que partimos de Setúbal, a questionar-me sobre a minha natureza. Depois do primeiro impacto no mar, quando o corpo relaxa após o fluxo inicial de adrenalina, refleti demoradamente sobre esta aventura de embarcar numa viagem à volta do mundo com um capitão em aparente crise de meia-idade. Como te lembras, o Silva é que mo apresentou depois de lhe ter dito que precisava de fazer uma sabática.
«Capitão, aqui está alguém com quem podia contar para a sua viagem. Tempo não lhe falta e vontade de partir numa aventura é uma constante desde que ela era uma miúda e me dava caneladas nas pernas quando perdia a jogar à bisca.»
O capitão tinha o plano completamente delineado: 4 anos à volta do mundo a bordo do “Nómada”, um ketch de 45 pés., com passagem por 222 portos. «Isto se não houver desvios, depende também dos tripulantes que formos encontrando e de outros companheiros de viagem que formos recolhendo. Tenho um anúncio na Internet para recebermos pessoas a bordo que nos queiram acompanhar numa parte da viagem», explicou.
Três semanas depois, estava pronta para embarcar. Não pensei muito sobre o desafio, senti apenas que era algo que tinha de fazer. Não há nada de interessante para mim em terra e posso fazer como outros que decidiram navegar um pouco e ver as águas do mundo. Suponho que terei tempo de sobra para refletir sobre isso e outras coisas mais, o regresso está marcado lá para dezembro de 2028. Não te assustes, a qualquer momento posso apanhar um avião e regressar mais cedo a casa. Para já, o primeiro porto é a Baleeira. No início da manhã devemos chegar a Sagres, onde vamos recolher mais dois tripulantes. Já sinto em antecipação saudades da minha cidade do rio azul e não resisto a cantarolar a melodia tornada célebre pelo Xico da Cana.
Está na altura de acordar o capitão. “Já ninguém o conhece por Joaquim do Ó. Como os camones que ele levava em passeios turísticos lhe trocavam as voltas ao nome, ele adotou uma versão inglesa para facilitar a comunicação e agora é assim que toda a gente o conhece.”, explicou o Silva. Um nome é mais do que sons ou letras. É um signo que codifica a nossa identidade. Porque é que não havemos de poder criar a nossa identidade nomeando-nos a nós próprios?
“Chama-me Jack Daw”.
A cidade do rio azul
A minha terra natal, lugar de onde parti e ao qual regressei em variadas ocasiões, sentindo sempre a contradição de ser e de não ser de Setúbal.
O navegante do deserto
O mar é como as dunas do deserto, um plano de viagem despido de referências humanas. Evoco na memória os sons de outras viagens, músicas de trilhos exóticos.