Estamos ao largo da ilha da Madeira, a 450 milhas de Vila do Porto e, infelizmente, o vento caiu, tal como o capitão tinha receado. À velocidade de 2.7 nós não vamos conseguir chegar aos Açores antes do fim de semana. Mesmo assim, o desvio para sul terá permitido uma viagem mais tranquila e fugir ao centro da depressão, que nos deixaria parados durante dias.
Mesmo assim, há uma certa impaciência na tripulação e passarmos ao largo de terra sem atracar deixou a tripulação um pouco agitada. Afinal de contas, este é o quinto dia com os quatro metidos no mesmo barco e a ideia de um atraso desagrada a todos. Pessoalmente, estou a morrer por um duche de água quente e uma cama bem assente no chão. Não sofri qualquer enjoo, mas tenho tido o cuidado de beber muita água e comer pequenas quantidades.
O Campelo trouxe com ele uns quantos refrigerantes que deram azo a um debate sobre a indústria alimentar.
«Para além do plástico, o que está lá dentro é puro veneno. Se se quer matar, ao menos faça-o com uma bebida digna desse nome», gracejou o capitão.
«Mas há quem diga que a Coca-Cola é boa para a diarreia.»
Gargalhada geral.
«Campelo, você vive mesmo no mundo dos mitos e dos super-heróis. Esse “há quem diga” tem nome?», observou o Sage, num tom amigável.
O Campelo encolheu os ombros e balbuciou algo imperceptível.
Não me recordo ipsis verbis da intervenção do Carlos Sage, mas foi mais ou menos isto:
«O problema de afirmações sobre os efeitos benéficos da Coca-Cola é não só o das fontes, mas até das motivações dessas fontes. Há uns anos foi publicado um artigo num prestigiado jornal de farmacologia e terapêutica alimentar a defender o uso de Coca-Cola para tratar de uma maleita qualquer do estômago que afeta para aí 0,4% da população mundial. O pretenso estudo consistiu na pesquisa online em dois motores de busca da área da medicina e no Google de artigos que referissem casos de sucesso no tratamento da tal situação usando Coca-Cola. Encontraram 47 casos e em metade deles a Coca-Cola surtiu efeito. Agora, existem vários problemas com a publicação deste estudo. Estudo… enfim, vamos chamar-lhe estudo para não usar nomes feios. Primeiro, falar do efeito da Coca-Cola na tal maleita é o mesmo que falar do efeito do Cozido à Portuguesa na prevenção da gota. Era preciso segmentar os ingredientes para saber qual é que produz o efeito: é o chouriço de carne ou o repolho, hum? Em segundo lugar, o que o estudo não revela é a quantidade de casos em que a administração de Coca-Cola não surtiu efeito e que não foram documentados ou publicados. Mais facilmente alguém vem proclamar publicamente os seus sucessos do que os seus insucessos. Terceiro, um estudo verdadeiramente científico teria um grupo de controlo que bebesse uma outra coisa qualquer a pensar que era Coca-Cola para ver a diferença. O mais grave disto tudo é que um artigo miserável pretensamente científico é citado na comunicação social para dizer que a Coca-Cola trata uma coisa qualquer e daí é um simples passo para dizer que afinal a Coca-Cola é boa para a saúde. Amigo Zé Campelo, a indústria alimentar tem mentido aos consumidores e infelizmente com a ajuda de falsos cientistas, tal como o fez a indústria do tabaco.»
«Parece que também na ciência são criados mitos, não é, Carlos?», observou o Zé Campelo.
«É bem verdade. O mais importante não são as etiquetas de ciência disto ou daquilo, é a abordagem científica. Áreas como a antropologia ou a etnografia, que estudam os mitos das diferentes culturas, têm feito estudos científicos.»
Estão a tornar-se compadres. Bem melhor para eles. Numa ilha como Santa Maria, com 4 mil pessoas, é bom ter alguém com quem conversar.
Adoça-me a boca...
Os jornais científicos têm sido usados para passar informação falsa ou desviar atenções, como o fez a indústria alimentar sobre os fatores de risco das doenças cardíacas, desviando a atenção do açúcar para o colesterol.
Desentope a fundo mesmo!
O estudo referido por Carlos Sage sobre o desentupimento do intestino delgado pela ingestão de Coca-Cola refere que o refrigerante permite dissolver sementes, pelos e fibras. E isso será bom?
Não há fraldas para estudos destes
A selva académica tem promovido práticas predatórias sem qualquer ética. Uma revista científica, supostamente com revisão por especialistas, publicou um artigo sobre uma doença que só existe num episódio da série “Seinfeld”…