Esta é uma mensagem escrita ao ritmo das garfadas num enorme pequeno-almoço inglês, com muitas paragens para satisfazer a minha voracidade. Embora os dias tenham sido de descanso, ontem saímos até tarde e hoje acordei tarde completamente esfomeada. Mas já te conto enquanto como.
No sábado, quando chegámos a Vila do Porto, só não pulava de felicidade por não ter força nas canetas. Nunca pensei que iria sentir-me tão feliz por ter os pés em terra depois de uma semana contínua no mar. Nas primeiras horas, andava sempre aos balanços como se tivesse completamente embriagada e, quando menos esperava, as pernas iam abaixo a tentar compensar o impulso provocado por uma vaga imaginária.
Ficámos no anexo de uma casa de família perto da vila que o capitão tinha contactado para reservar acomodações para cinco noites mais refeições. Só que ele não tinha contado chegarmos durante a madrugada e tivemos de matar tempo até nos podermos instalar com a nossa bagagem.
«Tomam o pequeno-almoço no meu café. A esta hora a minha mulher já está a preparar o dia».
O café do Zé Campelo é um misto de casa de antiguidades e loja de banda desenhada, com objetos recolhidos em todo o mundo e colecionáveis de super-heróis, rodeados pelo cheiro de café e de comida no ar, o que dá uma sensação de conforto caseiro. Ali nos deixámos estar, mudos e quedos, a ver a comida a chegar à mesa em sucessivas viagens da mulher do Campelo.
«Deixem-se estar, dá para ver pela vossa cara que estão muito cansados».
Comemos lenta e silenciosamente.
«Parecemos os Vingadores depois da batalha de Nova Iorque», disse subitamente o Campeço, rompendo o silêncio.
A cara do Campelo estava iluminada com um sorriso de orelha a orelha ao dizer-nos isto. Olhámos uns para os outros e subitamente começámo-nos a rir e só parámos quando a pouca energia que tínhamos se esmoreceu em convulsões pianíssimo. Não sei o que passou pela cabeça do resto do grupo, mas para mim o quadro de quatro moribundos sentados em redor de uma mesa pareceu-me ironicamente distante da disposição heroica pós-aventura. E daí, esta cena repetir-se-á provavelmente ao longo desta volta ao mundo.
«Sigam a vossa benção», instruiu-nos o Campelo durante a boleia até às nossas acomodações. Um individuo impecável e generoso, com uma mente viva. O mesmo se diga do Carlos Sage, que não deixa o seu rigor científico toldar-lhe uma perspetiva da dimensão mais humana da vida. Feitas as despedidas, a troca de contactos e as habituais promessas de um encontro futuro, pudemos finalmente descansar.
Dormi todo o dia de sábado e no domingo ainda estava com o corpo moído, mas saímos para esticar as pernas e visitar a vila. É uma localidade aninhada em comprimento ao longo de um estreito vale com três ou quatro ruas dispostas na perpendicular da zona habitacional cumeeira até ao pequeno porto, acoitado numa apertada enseada sob a vigilância de um antigo forte. Se largasses um berlinde à porta da primeira casa do morro iria descer direitinho para o mar sem se desviar mais do que uma dezena de metros. Do lado poente do porto sai uma estrada que liga ao aeroporto, alinhado com a costa oeste da ilha de Santa Maria. Para leste ficam meia dúzia de lugarejos, vinte ou trinta casas em cada um desses sítios, e o farol de Gonçalo Velho, onde fomos ontem jantar em casa do faroleiro. O edifício fica isolado no extremo da ponta sudeste da ilha, acessível apenas por uma estreita estrada com escadas ao centro. É um desafio para qualquer condutor, mas nada que assustasse o nosso motorista de táxi.
«Eu faço esta rampa com um olho fechado. Conheço os caminhos todos, mas a verdade é que não há muito para descobrir, num dia faz-se o circuito todo. Isto não é como quando estava imigrado em Los Angeles, cada serviço era uma aventura. Mais logo, no caminho de volta, eu conto-vos a vez que levei um tipo à torre Nakatomi.»
Apesar de termos o táxi à distância de uma chamada de telemóvel e de um cigarro, sentimos o isolamento do promontório. Era aquilo que o faroleiro, um amigo de infância do capitão, tinha procurado durante muitos anos.
«A minha paixão pela solidão dificilmente poderia ter sido mais completamente gratificada. Eu não digo satisfeito, pois acredito que nunca irei ficar completamente saciado com o prazer que tenho experienciado no dia a dia aqui.»
O faroleiro tinha apresentado um requerimento para ser colocado sozinho naquele posto e, por razões financeiras ou por pressão de algum antigo favor, o pedido fora aceite.
«Há dias que passo numa espécie de êxtase que é impossível descrever.»
O seu aspeto físico não denunciava o misantropo que ele proclamava ser. Vestido a rigor com o uniforme da Armada, levou-nos a ver o farol antes do jantar para garantir a sobriedade – provavelmente a dele, percebi mais tarde – e evitar quedas pelas escadas abaixo, uma experiência que ele já deverá ter sentido dolorosamente. Tanto o espaço de trabalho, como a área de lazer estavam arrumadas a primor. Havia até um toque cerimonial na disposição da mesa para o jantar e, no início, estava à espera de ver entrar um criado para nos servir como nos filmes, mas quem surgiu à porta da casa foi um velho apoiado numa perna de pau com uma barba à Abraham Lincoln que mais tarde me explicaram ser o estilo “Shenandoah”. Era um antigo mestre baleeiro e, aparentemente, a única companhia que o faroleiro admitia ter de tempos a tempos.
«O capitão Ed é um homem como nunca vi. Não fala muito, mas quando o faz, é melhor ouvi-lo.»
Não sei como um misantropo pode dizer que aquele homem raramente fala, mas talvez a circunspeção do faroleiro roube a língua ao mestre baleeiro nos seus encontros a dois. Não sei o que lhes chamar. Ao faroleiro chamar-lhe-ia lunático, não fosse precisar também dessa palavra para descrever o homem sentado ao seu lado. O mestre baleeiro entrou na sala de jantar com os gestos de um ator shakespeariano a produzir um discurso oscilando as silabas em ritmo jâmbico como ondas atravessadas por um mar encrespado.
«Que vejo eu? Ambrósia celestial lubricada com divino néctar diretamente do Monte Olimpo!» declamou com um copo de vinho na mão, erguendo o frango na embalagem de alumínio, revelando uma etiqueta colada ao fundo onde se lia “Snack-Bar A Travessa – Frango na brasa, mas sem pressas”.
Assim foi todo o jantar. O austero faroleiro – não me consigo recordar do seu nome e tenho a ideia de que nunca ninguém o referiu –e o histriónico mestre baleeiro fizeram os diálogos como se representassem uma incoerente obra dramática para mim e o capitão Jack, sentados do lado oposto da mesa. Diálogos? Deveria dizer os monólogos do capitão Ed.
«Que ninguém diga de mim iguais palavras às ouvidas pelo infeliz capitão que nunca bebia água, vítima da hidrofobia que o mantinha em terra. A mim do que beber jamais ousaram me dizer! Desviar-me do meu intento? O caminho da minha resolução é feito com trilhos de ferro, onde a minha alma está encarrilhada.»
O volume da voz do mestre baleeiro aumentou à proporção do álcool ingerido ao longo da noite, enquanto o faroleiro enrolava mais e mais os raros monossílabos dentro de si próprio. Como um espetáculo de cabaré, os temas foram rodando com interpretações dramáticas do mestre a relatar episódios centrados na exibição da sua autoridade e da sua coragem.
Depois de uma longa pausa em que pensei que o homem finalmente iria silenciar-se de exaustão, levantou-se e olhou-me fixamente como se tivesse ouvido os meus pensamentos, todas as rugas faciais endurecidas como linhas metálicas retesadas no esforço de sustentarem as diferentes partes do rosto.
«Eu sei, menina, os pensamentos que revolvem na sua mente. Reconheço-os no desprezo desmaiado nas faces das gerações desta vossa era do digital. Não ganham alma esses pensamentos porque vos falta o sopro que animava o peito das gentes do meu tempo, mas estou vigilante a quem me lançar o primeiro insulto! O vosso olhar higienizado filtra a luz do mundo natural e, vendados pelo jorro brilhante dos cristais líquidos, sois criaturas cegas desde a nascença, ignorantes de que os vossos objetos visíveis são máscaras feitas de algoritmos e simples impulsos binários. Eu conheço essa vossa repulsa pelo passado cruento e sanguinário. Tenho eu sangue nas minhas mãos que tornariam o mar vermelho tentasse eu lavá-las? O sangue nas minhas mãos alimentou muitas bocas esfomeadas e depois delas muitos cães as lamberam esganados. Antes do vosso petróleo e dos vossos plásticos, que matam mais nos oceanos do que vos querem contar, estava nas baleias o óleo que ungia as rodas da indústria e impedia a máquina do mundo de encravar. E no caso das suas antepassadas, era da baleia que vinha o óleo para alumiar as vossas noites mais solitárias, o âmbar para adocicar as vossas peles, as cerdas para sustentar os vossos corpos em elegantes corpetes apertados. Havia morte, sim, porque era de morte ou de vida que se tratava. Quantas vezes os homens largaram as cordas que desciam à terra um companheiro morto no mar para agarrarem os cabos do bote ao grito de baleia avistada. A mortandade veio de outras paragens, da terra da ganância e da industrialização, da miragem seguida por muitos dos açorianos crentes no sonho americano, um país tão capaz de autofagia como o gigante chinês e o titã russo. A caça à baleia tornou-se a mais blasfema das blasfémias porque a avidez humana armou fábricas assassinas com arpões certeiros espalhadas pelo mar fora. A natureza humana é antinatural e o nosso bafo é feito de pesar pois sabemos ser nosso o advento da destruição. Não podemos parar e só quando formos extintos haverá um novo equilíbrio no nosso mundo. Oh, pesada é a cabeça coroada com a visão da nossa atroz humanidade pois sabe que não consegue governar o maleficente coração dos homens! Deixai-me sós agora, sinto o palato farto do sabor desta conversa!»
E retirou-se com o eco do martelar da perna a apagar-se ao longe pela porta aberta. Eu e o capitão deixámos o faroleiro a roncar álcool e chamámos o táxi para regressar a casa.
«É uma personagem, o capitão Eduardo. Conta-se muitas histórias, mas toda a gente diz que ele ficou apanhado quando perdeu a perna.»
«Foi algum acidente na baleação?»
«Não, foi algo menos trágico. Assustou-se com um peixe-lua quando estava sozinho à pesca e caiu ao mar com um cabo enrolado na perna.»
E terminámos a noite a ouvir a história da torre Nakatomi. Conto-ta noutra altura, tenho de ir. Dou novidades quando partirmos para a ilha do Faial.
Loop infinito
A lista de superheróis parece interminável e acompanhar o “lore” dos mundos Marvel ou DC é uma tarefa para heróis mesmo.
Capitão Ed
O sentimento de vingança não promove uma boa digestão e isso dá para ver na cara do Capitão Ed.
O temível peixe-lua
Um dos peixes mais elusivos do mundo, o peixe-lua é também o mais pesado e maior peixe ósseo do mundo.