Lembras-te das aventuras dos Cinco? Os Cinco no Lago Negro e os Cinco e o Comboio Fantasma eram as minhas histórias favoritas por serem mais noturnas. Pois, não vais acreditar, mas estou a viver uma aventura do mesmo tipo. Estou junto ao Farol da Ponta dos Capelinhos a vigiar no escuro dentro do carro depois do capitão ter seguido para dentro das ruínas.
«Se aparecer alguém, faça um sinal com as luzes»
Não sei se é o efeito da escuridão ou se o simples facto de alguém dar uma instrução como se algo de anormal se passasse para a nossa perceção dos eventos se alterar. E, no entanto, o dia de hoje não pode ser classificado como absolutamente normal…
Como te tinha dito, fomos para o encontro de capitães no Peter Café Sport. Trata-se de um lugar mítico para a comunidade mundial de velejadores. Começou por ser uma loja, mas depois mudou de instalações para junto do porto e um dos filhos do proprietário decidiu ampliar o espaço e criar um bar vocacionado para os homens do mar. O nome Peter era uma espécie de alcunha do filho que explorava o bar; era assim chamado por um oficial da marinha inglesa que o achava parecido com o seu filho Peter, e o nome ficou.
«Aproveito para levantar o correio que tenho aqui à minha espera», disse o capitão.
«O bar é um posto de correios também?»
«Antes dos e-mails e das mensagens instantâneas, os velejadores enviavam o seu correio para o Peter, que o guardava e entregava conforme os velejadores passavam por aqui. Conta-se que até a mulher do Chichester, que era amigo do Peter, enviava para aqui as suas cartas para serem entregues ao marido.»
A fachada azul com duas singelas janelas não indicia o espaço do bar/restaurante, massivamente decorado com bandeiras, utensílios náuticos e outros artefactos ligados à temática do mar. À nossa entrada, três homens sentados à mesa no canto direito da entrada levantaram os olhos. Um deles ergueu-se, afastou uma cadeira e criou espaço para juntar outra mesa.
«Nemo, há já alguns meses que não te via. Andas submergido há demasiado tempo.», disse o capitão Jackdaw, cumprimentando o homem que se tinha levantado em toda a sua altura para manobrar a mesa e que agora nos observava com uma expressão desenhada a esquadria: um sorriso fino de dentes bem alinhados, perpendicular a um nariz que descia a direito de uma grande testa, separando os olhos negros bem distanciados um do outro. Tinha feições indianas, mas a pele pálida como se tivesse perdido todo o sangue, condição atestada pela mão gelada com que me cumprimentou.
«Tempo suficiente para me gelar as mãos, mas não o coração.», sorriu, enquanto segurava a minha mão.
«Kirk. Mas pode chamar-me Jim», interpôs-se um dos capitães, vestido com um uniforme minimalista, agarrando e beijando a minha mão, a cara redonda preenchida com um sorriso juvenil e os olhos semicerrados.
O terceiro elemento permaneceu sentado com um cigarro no canto da boca de finos lábios esticados, quase a tocarem nas longas patilhas negras que desciam do boné de capitão. O rosto angular parecia ter sido aparado pela agrura de diferentes ventos, e dois rasgões longitudinais abrigavam os olhos negros vagantes como se estivesse a sonhar acordado. Uma argola dourada pendurada na orelha esquerda dava-lhe o ar de um exótico mercador de uma banda desenhada.
«Então, Corto, ainda não te decidiste pelos adesivos de nicotina?»
«Preciso de algo para entreter os meus lábios.», respondeu sem desviar o olhar de mim. Depois virou-se para o capitão Jackdaw, cerrou ainda mais os lábios num sorriso e acrescentou: «Assim, mantenho-me longe de problemas.»
«Boca fechada, boca dourada.», exclamou o capitão Nemo e projetou para o teto uma gargalhada sonora que atraiu o olhar de toda a gente.
«Shhh, discrição, companheiros.», sussurrou o capitão Jackdaw. «Mais alguém está por cá?»
«O Aubrey chegou ontem à noite e está a curar uma ressaca. O Haddock está no calabouço da esquadra. Começou a puxar a barba de um velhote e foi levado pela polícia. Mas não deve demorar a sair. Os restantes chegam ao pôr do sol», informou o capitão Corto.
Nessa altura, fui estrategicamente entregue aos cuidados do Sr. José Henrique Azevedo para visitar o museu particular de “Scrimshaw” e as suas magníficas peças decorativas feitas com dentes de cachalote gravados e pintados com temas náuticos.
«Vamos rever os detalhes, então.», ainda ouvi o capitão Jackdaw dizer.
Depois, quando voltei da curta visita guiada, já estavam à volta do menu.
«Um Bife à Peter, tenho uma fome vinda das profundezas», vociferou o capitão Nemo, soltando mais uma sonora gargalhada.
Todos foram para os pratos de carne e eu acabei por os seguir. O jantar foi delicioso – aposto que irias adorar o Bife com molho pirata dos Açores – e os companheiros de mesa foram corteses no seu charme, apesar de se notar que estavam há demasiado tempo isolados no mar alto sem visitarem um porto de abrigo, se percebes o que quero dizer. Por mim, tínhamos ficado por lá o resto da noite a conversar, mas o capitão Jackdaw pôs-nos a andar.
«Vemo-nos daqui a pouco».
E até agora, nada. Eu sei que eles estão reunidos nas ruínas do farol, mas o que é que estarão a fazer? Que tipo de encontro é este? Estarei a apoiar um ato criminoso? E como poderei julgar esse ato? Será possível saber se algo é bom ou mau antes ocorrer em toda a sua extensão e consequências?
A minha curiosidade é mais forte do que o meu sentido de obediência. Vou dar uma espreitadela. Se não souberes nada de mim nas próximas 24 horas, contacta o Peter Sport Café. Pode ser que saibam o que se passou comigo…
Capitão James T. Kirk
“Un charmant”, diriam as francesas. Com um sorriso fácil e um olhar intenso, o capitão Kirk não deverá ter dificuldades em encontrar companhia.
Capitão Nemo
Um “gentleman” com um profundo assomo de insanidade: ora se deixa estar silencioso fechado nos seus pensamentos, ora a seguir se solta ruidoso para o mundo.