Sic.. et Non

May 28, 2024

«Os corações dos homens e das mulheres são movidos mais por exemplos do que por meras palavras e encontram consolo no testemunho do sofrimento daqueles que, quando comparadas as misérias de uns e outros, merecem mais a nossa compaixão. É por isso que conto sempre o trilho que me trouxe até aqui, para que quem me procura descubra a leveza das suas penas face às minhas tribulações e, dessa forma, possa enfrentar os seus obstáculos com maior facilidade».

Parece-te um discurso de um filme bíblico tecnicolor? Pois foi assim que o ermita nos recebeu, depois de meia dúzia de frases protocolares de saudações e apresentações. Não vais acreditar quem ele é. É o Bel, aquele tipo que aparecia nas capas das revistas de fitness a prometer vigor e maratonas sexuais aos desgraçados de meia-idade apanhados na ratoeira da rotina casa-trabalho-comida-televisão.

De certeza de que te lembras dele. Há cinco anos, ele entrou no circuito dos ginásios de Lisboa. Com o nome artístico de “Bel”, não parava de dar aulas de zumba e de meditação. Em poucos meses acabou com a concorrência e não tinha mãos nem pés a medir para as solicitações. Meteu-se na música, teve uns sucessos pop na rádio, até que se embrulhou com a cliente errada, uma tal Heloísa, sobrinha de um desses magnatas dos supermercados. A jovem estava destinada a seguir uma carreira de topo na administração do conglomerado: depois de estudos em universidades de topo com um MBA de luxo, deu cartas de marketing como CMO, substituiu um primo como CCO quando este meteu a pata na poça numa entrevista com uma revista internacional, tornou-se a mais nova CBO e toda gente a tinha na mira para substituir o velho tio como CEO. Até ela ter caído de amores pelo Bel e deixar uma carta de demissão assinada CU CEO (não é o que tu pensas, esta gente da economia fala por siglas, tem uma gíria como os ladrões). O tio não gostou do “see you” e não esteve com meias medidas: comprou todos os ginásios da área e destruiu a reputação do Bel.

O escândalo da relação deu-lhe outro tipo de fama e acabaram os dois num reality-show, lembras-te? Não durou muito tempo, os diálogos entre eles não eram suficientemente bregas para atrair as audiências. Ela ainda teve umas tiradas que causaram sensação, como aquela em que disse que em vez de esposa, era-lhe mais doce aos ouvidos os nomes de amante, concubina ou puta. Toda a gente se escandalizou, o tio dela deserdou-a, e ninguém percebeu a referência à amante de Péricle. Nem o Bel, que se acagaçava todo em frente das câmaras e a mandava rezar no ginásio.

Eles até chegaram a casar em segredo, acho que ela estava grávida, mas depois cada um seguiu rumos diferentes e o Bel, agora rebatizado Abelar, refugiou-se no Corvo e criou uma espécie de retiro espiritual para quem quer unir a mente e o corpo, uma espécie de visão holística do mundo que, ao mesmo tempo, é individualista.

«Eu sei que, inicialmente, é difícil de explicar, mas tudo passa por duvidar rigorosamente de tudo o que pensamos e fazemos. A chave para a sabedoria é perguntar, constante e frequentemente. Só através da dúvida é que procuramos respostas e nessa procura é que vislumbramos as verdades. Afirmamos algo e depois afirmamos o contrário, dizemos sim e depois dizemos não.»

«E a síntese?», perguntou o capitão.

«Para que precisa da síntese? Essa necessidade de encontrar uma essência universal é o erro da nossa sociedade. Esses conceitos sintéticos universalizantes, como humanidade, são apenas nomes, convenções que agrupam indivíduos, mas sem que haja uma essência distribuída por todos. Somos compósitos e ao olhar-nos a nós próprios devemos fazê-lo como quem olha para a Terra do espaço e não do topo de uma montanha.»

Podia jurar que ouvi o piloto dizer “Ámen” a seguir, mas por essa altura já o Bel estava rodeado de um grupo pronto para o treino de fitness da tarde.

«Lembrem-se, intencionalidade é importante, mas a ação é o que conta. Sem ação não há mutação. Vamos mudar essas mentes, vamos mudar esses corpos!»

E arrancaram numa corrida pela cratera fora. O capitão ficou por lá, eu regressei à vila e estou agora a descansar no quarto. Vou precisar de todas as energias, em breve vamos fazer a travessia do Atlântico. Tenho medo.

Boa forma e conteúdo

A relação amorosa com a sua discipula Heloíse trouxe-o à ribalta, mas Abelardo já era uma das principais figuras da filosofia ginástica, debrunçando-se sobre o problema dos universais e do nominalismo.

Música para correr sem parar

O duo britânico de música eletrónica Hybryd, formado por Charlotte e Mike Truman, é um caso de sucesso da música eletrónica e de jogos de computador, que o Abelardo usa, com muito sucesso, para toda a gente a correr.

Sonhos partidos

Gravada em 1969 pela banda australiana Python Lee Jackson com a voz de Rod Stewart – na altura um desconhecido – a canção foi relançada 3 anos depois, quando o cantor Rod Stewart começava a ser famoso. Stewart foi um sucesso, a banda desmembrou-se.

vulcao ilha do corvo

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.