Rumo à Nova Escócia III

Jun 10, 2024

Estamos bem longe do triângulo das Bermudas, mas tivemos um estranho encontro em alto-mar. Talvez esta zona do atlântico norte seja a porta das traseiras do triângulo. Tentei memorizar as coordenadas – 41.70 e qualquer coisa norte e 41.40 qualquer coisa oeste – quando o capitão as anotou no diário de bordo.

A embarcação que avistámos não era nada de especial, à primeira vista, apenas mais um veleiro na travessia do Atlântico. Fez rumo na nossa direção e nós na direção dele, o nosso motor ligado porque estávamos numa estranha zona de calmaria no oceano. Era um trimarã com um casco branco muito coçado, provavelmente há muito tempo a navegar sem manutenção, a julgar pelo apagamento de algumas das letras do nome, inscrito num rosa que já fora vermelho em tempos. Apenas se conseguia ler “mouth”.

«Ponham as defensas, acho que eles querem acostar.», ordenou o capitão. Um calafrio percorreu a minha espinha a pensar que estávamos completamente sozinhos e que não teríamos ajuda de ninguém caso este fosse um barco pirata. «Não são piratas, são vagabundos do mar que precisam provavelmente de alguma ajuda», assegurou o capitão. Mesmo assim, observei com atenção os dois homens que manobravam o trimarã. Um deles tinha vestido um fato completo impermeável amarelo, de onde emergia uma cabeça redonda com cabelo ralo encaracolado em desalinho atrás das entradas que acentuavam o tamanho da testa; o outro tinha o ar de ter sido teleportado do nada para aquele barco, vestido de fato e gravata, o cabelo penteado, colado ao crânio com algum tipo de sebo que lhe dava um reflexo basso.

«Viva! Encontrar-vos no meio do oceano é a prova matemática de que a raiz de menos um pode transformar acasos imaginários em encontros reais», gritou o homem do fato amarelo para se fazer ouvir da popa do barco, onde imobilizava a retranca já sem vela.

«E onde é que os vossos cálculos matemáticos vos levam?», perguntou o capitão.

«Ah, seguimos o espaço contínuo.», respondeu a sorrir. «Mas fomos atraídos para aqui e, de repente, como um magneto assente sobre um pólo contrário, girámos inconsistentemente.»

«Também nós fomos atraídos para estas coordenadas. Há quanto tempo estão aqui?»

«Décadas parece. Vocês são as primeiras almas vivas com quem nos cruzámos desde há algum tempo, mas raramente estamos sós. Às vezes há música e ouvimos sons de festa e gargalhadas, outras vezes gritos de pânico e pedidos de ajuda.»

Olhou em volta lentamente, como se estivessemos a ser observados por alguém.

«Donald é o meu nome. Aquele é o Faraj.» Aproximou-se da meia nau e estendeu a mão para cumprimentar o capitão Jackdaw. O outro tripulante fez um gesto com a mão e deixou-se estar a observar sentado na popa do barco. «Têm alguns mantimentos que possam partilhar? As minhas provisões foram calculadas com precisão matemática, mas o Faraj ali apareceu-me no meio do oceano, atirado borda fora de um cargueiro de madeira, e tive de o recolher»

«Faraj», repetiu o capitão. «É um nome persa?»

«É britânico», respondeu o homem, com um ar amuado.

«A mim faz-me lembrar o filme do Lawrence da Arábia.», acrescentou com um riso o homem do fato amarelo, a olhar à distância para o homem do cabelo seboso. «Diz que é um importante membro da corte política, daqueles que tem a função de mover todo o sistema político-económico do país – talvez do mundo. Querem moldar o curso da história, como na primeira aplicação estilhaçada da ideia de que E é igual a mc ao quadrado – refiro-me ao bombardeamento de Hiroxima.»

«Por amor de Deus, eu sou britânico! E sou uma pessoa célebre, tirem-me daqui!!», repetiu o homem, elevando a voz e os braços em direção ao céu.

«Não ligue, ele é muito sensível a estas questões de nacionalidade. Quando avistámos ao longe um cargueiro europeu, foi-se esconder debaixo da mesa do rádio.» Voltou-se para o capitão. «De todo o modo, se não fosse muito inconveniente para vós, poderiam dispensar alguma comida e bebida? Se tivessem um pouco de álcool, seria excelente.»

«Claro que sim, temos mantimentos suficientes para vos dispensar. Venha a bordo.», convidou o capitão.

Ficamos surpreendidos a ver a quantidade de comida e bebida que o capitão colocava em duas grandes caixas que o homem de fato amarelo tinha trazido com ele para o nosso barco. O capitão fez-nos um sinal para estarmos tranquilos.

Colocaram as caixas no convés, o capitão abriu uma garrafa de grogue e estendeu ao homem do fato amarelo.

«Já percebi que anda há imenso tempo no mar e suspeito que não tenha interesse em pôr os pés em terra.»

«Fiz umas apostas que não devia, é melhor manter-me afastado por algum tempo.»

«Só isso?»

«O mar é o meu espaço para estudo, o meu laboratório. Não é que eu faça investigação específica sobre o mar, mas o isolamento permite-me explorar as minhas ideias com maior profundidade.»

«E que ideias são essas, se não é intromissão perguntar?»

«Tenho feito cálculos com vista a desenvolver tecnologia para manipular o espaço contínuo e possibilitar a integração cósmica. Isso permitirá libertar a inteligência humana e tornar a existência física supérflua.»

«E isso é bom, abandonarmos a nossa forma física?»

«Nós somos seres muito inteligentes, mas infelizmente precisamos destes corpos de símios para carregar a nossa inteligência e dar realidade mecânica às nossas ideias. O problema são as limitações que isto impõe: sofremos dor, corrupção e degradação na sociedade humana, não porque o sistema humano é malévolo – ele comporta-se “corretamente” de acordo com as suas próprias luzes – mas porque o cosmos está a tentar persuadir-nos a deixá-lo para passarmos a um plano mais elevado.»

«Talvez haja formas de mudar o sistema, não?»

«Talvez. Podemos trabalhar silenciosamente, tentando persuadir o sistema a nos aceitar, e mudá-lo no seu interior, ou simplesmente removemos a nossa inteligência para um sistema mais satisfatório. Na minha opinião, o anarquismo não vai mudar o sistema.»

«Parece ter uma certa descrença na humanidade.»

«Pelo contrário, a humanidade tem um enorme potencial e o amor deveria ser a base das nossas relações. Infelizmente, a nossa dimensão símia limita-nos a concretizar esse amor.» Olhou de soslaio para o outro homem no trimarã. «E infelizmente, somos incitados a promover um egoísmo que nos degrada ainda mais.»

Estendeu a garrafa de volta, mas o capitão fez-lhe um sinal para a guardar. Sorriu, atravessou para o trimarã, recebeu as duas caixas que lhe passámos e guardou-as no interior no barco.

«Sinto que deveria dar-lhe algo em troca.», disse com um enorme sorriso na cara. «Que tal ficar com o Faraj como par de mãos extra para ajudar a bordo?», sugeriu com um riso infantil.

«Parece-me que seria um lastro extra desnecessário.», respondeu o capitão a rir. «Pode ficar com o lastro. You keep it!.», acrescentou em inglês.

«É um lastro que não perturba em nada. Ele próprio diz que não ouve música, não vê televisão e não lê»

«Não, este barco tem as fronteiras bem definidas. You keep it.», repetiu o capitão, piscando-lhe o olho. Entre eles parecia haver uma certa cumplicidade.

«Deixe-me pedir-lhe outro favor.»

Afastados no extremo do barco, os dois conversaram em surdina, com o homem do oleado amarelo a pousar a mão no ombro do capitão. Com uma agilidade surpreendente para quem enverga aquele tipo de vestimenta, saltou para o trimarã, entrou no interior e regressou com uma caixa de cartão que passou ao nosso skipper. Fez uma saudação, soltou as amarrras e afastou os costados dos dois barcos com a bota. Quando estava já a alguns metros, empurrado suavemente pelo impulso, riu muito alto e gritou: «The only trouble with man is that he takes life too seriously!»

E aos poucos, o trimarã afastou-se de nós, as velas içadas e os dois homens sentados na popa.

O homem do oleado amarelo

O homem de oleado amarelo oscilava entre um franco sorriso de amizade e um franzir das sobrancelhas com a face virada para baixo em preocupação ou a tentar relembrar algo esquecido.

Nem tudo chega às nossas mãos…

Pode ser uma canção sobre amor, política e drogas a marcar o final da década (foi lançada em 1969). Apesar do seu possível tom negativo de resignação, e mesmo que fiquemos com o que aquilo que nos calha, isso não significa que não tentemos ter aquilo que queremos.

A quem quiser saber

O outro é a fonte dos nossos medos, o inferno em potência, até permitirmos que deixe de ser um estrangeiro para nós.

Rumo à Escócia III

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.