O encontro com o trimarã quebrou o nosso isolamento e apagou a sensação de estarmos sozinhos no mundo. Contudo, teve também o peculiar efeito de acender um desejo de estar em terra e de ver pessoas à volta, coisas a acontecerem em vez do marejar das ondas.
«Ainda vai demorar um pouco mais até chegarmos a terra, mas vão poder ver caras diferentes amanhã.», revelou o capitão.
Mais encontros no alto-mar? Aparentemente, o capitão tinha recebido uma comunicação via rádio a indicar que o capitão Nemo, um dos capitães que conheci nos Açores, estava à nossa espera com o seu submarino. Os nossos três tripulantes ficaram radiantes com a perspetiva de um encontro com um submarino no alto mar.
A noite foi animada, com um jantar bem regado –a garantia de mantimentos provenientes do submarino e um mar tranquilo como um lago permitiram uma refeição longa sem balanços – e um debate em torno de um valente arroto libertado por Russo.
«Não te deram educação em pequeno?», criticou Locke.
«E a que educação é que te referes? Aquela que tu advogas nos teus livros de obrigar as crianças a usarem sapatos desconfortáveis?»
Visivelmente embriagado, Russo descalçou um sapato e exibiu o pé nu ao nível da mesa, advogando que era melhor as crianças andarem descalças a molharem os pés na natureza do que a ensoparem os pés em sapatos rotos.
De um lado, o suíço defendia que era preciso deixar a criança desenvolver naturalmente as suas competências para manter o natural no homem quando é inserido na vida cívica; do outro lado o inglês argumentava que a criança é uma tábua rasa que deve ser orientada, embora aceitasse o desenvolvimento das competências naturais das crianças.
«E depois não têm maneiras à mesa e a perdem o uso da razão.», contrapôs Locke. «É necessário agir sobre a criança porque ela é como um quadro e aquilo que se escrever na sua mente irá perdurar. Se as crianças são deixadas ao “Deus dará”, vão acabar a torturar animais. É necessário ensinar humanismo.»
«Finalmente, vejo-te a concordar comigo.», gritou Russo, fazendo um brinde com Locke que entornou metade da bebida sobre a mesa. «Mas acho que exiges demasiado das crianças. Há certas coisas que só na adolescência se conseguem desenvolver e, nessa altura, é quando também se começam a distinguir as diferenças entre homem e mulher.»
«A que diferenças se está a referir, para além das óbvias ao nível físico?», perguntei.
«Os homens tornam-se fortes, as mulheres mais passivas e começam a preparar-se para desempenhar o papel de submissão em relação aos homens».
«As raparigas tornam-se maduras mais cedo do que os rapazes, que continuam infantis, às vezes até depois dos 30. As mudanças fisiológicas das mulheres obrigam-nas a criar uma consciência de causa-efeito que os homens não desenvolvem senão mais tarde.», contrapus.
«Essa maturidade é importante para tomar conta do lar.»
Sem ninguém ver, o capitão fez-me o gesto de quem já bebeu demasiado e deu-me a entender para os deixar estar a discutir.
Deixei-os no interior a discutir e pouco depois o capitão apareceu no convés.
«São o produto de uma época. Podemos torcê-los, mas acabam por voltar à posição.»
«É um problema de educação. Essa ideia da natural tendência de uma pessoa tanto pode ser visto como uma defesa como uma limitação. A pessoa deve ser livre de poder decidir que rumo quer dar à sua vida.»
«Sem dúvida. E por falar de rumo, está na altura de mudarmos o nosso, temos um submarino à nossa espera.»
Como uma matilha sonolenta pelo esforço da digestão, ficámos em silêncio no interior do “Nómada”, enquanto o capitão tratava de nos guiar para o “rendez-vous”.
O casal francês
Não cheguei a saber os seus nomes, mas o casal francês deixou um profunda impressão. A noção de que a existência precede a essência pareceu-me uma deliciosa reversão do idealismo platónico.
Nem tudo chega às nossas mãos…
Pode ser uma canção sobre amor, política e drogas a marcar o final da década (foi lançada em 1969). Apesar do seu possível tom negativo de resignação, e mesmo que fiquemos com o que aquilo que nos calha, isso não significa que não tentemos ter aquilo que queremos.
O estranho estrangeiro
O outro é a fonte dos nossos medos, o inferno em potência, até permitirmos que deixe de ser um estrangeiro para nós.