Chegada a Peggy Cove

Jun 21, 2024

Chegámos a Peggy’s Cove, na costa da Nova Escócia, no Canadá. Sinto uma ligeira vertigem ao pensar nas milhas de oceano que nos separam, cada um de nós de um lado diferente do Atlântico. O mundo cresce à medida da nossa consciência, no reconhecimento de rotinas desfasadas em locais diferentes: uma enfermeira na Califórnia que sai de casa para o trabalho com os filhos que deixará na escola, um taxista na Nigéria que exaspera com as filas de trânsito do final da tarde em Lagos, um funcionário de uma bomba de gasolina em Alice Springs que termina o turno com o nascer do sol na Austrália… Recordo-me daquele filme de Jarmush que vimos no Luísa Todi com o título “Uma noite na Terra” ou algo parecido. Diferentes culturas certamente, mas as dimensões básicas de espaço e tempo separam-nos: horas de acordar para ti quando ainda estou a meio do sono; pequeno-almoço aqui quando almoças aí.

Falando de pequeno-almoço, eu e o capitão largámos o lunático do Maquiavel no cais a apanhar um táxi para Halifax, deixámos bagagem e roupa suja na hospedaria “The Breakwater” – linda casa com imensas janelas junto à estrada principal, virada para a minúscula enseada – e fomos em busca de comida no restaurante junto do farol. Não há que enganar, visto que há apenas uma rua principal e meia dúzia de caminhos de gravilha para as poucas casas não alinhadas junto à estrada.

O restaurante chama-se “SouWester” e está aberto há mais de 50 anos, como prova a arquitetura do edifício com longas tábuas brancas de madeira a revestirem as paredes exteriores e um peculiar telhado escuro de onde saem várias janelas de estilo colonial. Quem quiser comprovar há quanto tempo se sustenta aquela casa no pequeno morro rochoso junto ao farol poderá utilizar a cabina “Tardis” em cor Ferrari colocada junto da entrada do restaurante. O amplo espaço aberto no interior tem um caráter mais funcional, criado para recolher na sua floresta de mesas e cadeiras os grupos de visitantes que chegam aos magotes em autocarros estacionados nas traseiras.

Esta manhã, porém, nenhum visitante tinha chegado. No interior, não havia ninguém além da empregada que nos deu as boas vindas e de duas pessoas sentadas a uma mesa junto à janela, de costas voltadas para nós, uma com um chapéu de palha quase tão largo como um “sombrero” e a outra com uma boina vermelha a deslizar para o ombro esquerdo. O capitão fixou o olhar por uns instantes e fez-me sinal para o acompanhar.

“Bom dia, capitão Slocum.”

As cabeças viraram-se e as caras sorridentes de dois velhotes surpreenderam-me.

“Jackdaw, bem-vindo a Nova Escócia! Bom dia, menina. Sentem-se, sentem-se.», disse o homem do sombrero, apontando para os lugares em frente do par. «Devem estar esfomeados. Já mandámos vir o pequeno-almoço do capitão para vocês.”

Mal tínhamos começado a acomodar as nágedas às cadeiras de madeira e a empregada trouxe dois pratos com três ovos estrelados cada, rodeados de bacon, bolinhos de peixe e salsichas, tostas e batata palha frita aglutinada com cebola e ovo, algo que dá pelo nome de “hash browns” e que é, provavelmente, uma bomba calórica. Tudo delicioso.

«Este é o Bill, mas é mais conhecido por deGarthe. Um artista de Peggy Cove que retratou, melhor do que ninguém, o que é ser um homem do mar na Nova Escócia.»

«É parecido com  ser um homem do mar na costa ocidental da Finlândia.», sorriu o homem da boina.

«O nome pode parecer local, mas o Bill é um finlandês de nascimento e no coração. E por pouco brasileiro!», riu o capitão Slocum.

«Estava à procura da terra mais bonita do mundo e acabei por a descobrir aqui, na Nova Escócia. E tu também andaste por lá.» Virou-se para nós e contou em tom de confidência. «Este homem pegou nos destroços de um barco, construiu uma nova embarcação e regressou com a família do Brasil aos Estados Unidos.»

«Ah, não vamos começar, Bill. Os nossos convidados não vieram cá para isso, não foi? Temos todos os dias do mundo para nos sentarmos aqui a contar histórias um ao outro.»

O capitão Slocum fez perguntas genéricas sobre a viagem – como esteve o tempo, se o vento foi favorável e as vagas confortáveis – e nem uma palavra foi dita pelo capitão Jackdaw sobre os tripulantes a bordo, o encontro com o trimaran à deriva ou a emersão do “Nautilus” com uma banda sonora a evocar alucinações no céu. Mantive-me em silêncio ocupada a saborear o pequeno-almoço. Chávenas de café de sabor forte chegaram e os estômagos começaram o seu trabalho de digestão, libertando as bolsas de ar ingeridas com as garfadas.

«Olha, Bill, porque é que não levas esta jovem a ver o monumento aos pescadores que fizeste perto da tua casa, enquanto eu ponho a conversa em dia com o jovem capitão Jackdaw?»

Os dois ficaram sentados, debruçando-se sobre a mesa quando o capitão Jackdaw mostrou ao velho lobo do mar algo de um pequeno caderno preto que trazia no bolso. O homem da boina vermelha levou-me pelo braço até ao exterior, mostrou-me o farol  e caminhámos de volta para Peggy Cove, passámos a nossa estalagem e chegámos a uma casa revestida com tábuas brancas.

«Levei alguns anos a fazer esta escultura», disse, apontando para uma linha de pedra branca no jardim ao lado da casa. Ao aproximarmo-nos, comecei a ver as figuras em relevo de pescadores e das suas presumíveis mulheres e crianças. No lado esquerdo, um anjo protegia algumas figuras sob as suas asas.

«É Santo Elmo. O padroeiro dos marinheiros.», esclareceu deGarthe. «E das dores de barriga.»

Rimo-nos os dois.

«Vai um gelado da Dee Dee?»

«Claro!»

Com o açúcar a subir à cabeça, senti-me mais à vontade para perguntar a deGarde o porquê de viver ali.

«A paisagem é bonita, mas não é um sítio demasiado isolado?»

«Não suficientemente isolado para impedir manadas de turistas de aparecerem aqui.», respondeu com gargalhadas.

Regressámos à casa dele e mostrou-me um conjunto de pinturas de cenas marítimas, muitas com figuras solitárias no mar ou envolvidas em nevoeiro, em isolamento. 

«Há um tipo simpático com um blogue sobre a vida solitária e ele diz numa das suas publicações – não me recordo agora literalmente – que foi viver para uma cabana no meio do mato para viver mais intensamente, ao contrário das massas que vivem um desespero silencioso nas cidades. Não me parece que viver rodeado de pessoas signifique romper com a solidão. Pelo contrário, aqui posso concentrar-me nas boas companhias. E falando delas, aqui vêm os nossos capitães.»

O capitão Jackdaw e eu regressámos à estalagem para descansar e aproveitei para pôr a escrita em dia. Fiquei a matutar naquilo que deGarthe disse. Pode ser que viver num espaço como Peggy’s Cove permita explorar melhor as boas companhias, mas estatisticamente afigura-se-me que as possibilidade de as encontrar são mais escassas do que numa cidade. Ou será que não?

Peggy's Cove

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Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.