Os últimos dias passados em Peggy Cove foram perfeitos para recarregar as baterias depois de uma travessia do Atlântico Norte. O capitão Slocum levou-nos a conhecer Mount Hanley, a sua terra natal, e fizemos o percurso ao longo de quase toda a costa marítima da Nova Escócia.
Não queria sair daqui sem explorar ao máximo a beleza natural deste território, mas cá estou de trouxa ensacada e pronta para zarpar. Não é tanto por ter um certo sentimento de obrigação em acompanhar o capitão – até onde e durante quanto tempo, ainda não sei – mas sobretudo por sentir a morder o bichinho da curiosidade sobre o que é que ele anda realmente a fazer nesta volta ao mundo.
Estava a matutar nisto a caminho do barco quando vi uma multidão no ancoradouro em torno do nosso barco. Já estava na expetativa de encontrar mais um conselheiro político na tripulação, ou até mesmo um político popularucho, a julgar pela amalgama de gente, mas afinal era um “influencer”.
Nunca tinha visto tanta gente a tirar selfies ao mesmo tempo em torno do mesmo sujeito. Vários semicírculos concêntricos de fãs, dispostos em torno de uma figura com uma peruca branca e aquilo que pareciam penas de pavão no topo da cabeça à moda dos índios dos westerns. Alguns dos seguidores tiravam selfies de outros a tirarem selfies de outros a tirarem selfies com o influencer, numa mise en abyme irregular. Mais afastado, um outro grupo, que parecia ser o dos groupies do influencer, organizava uma parafernália de malas, caixas de papelão e uma pilha de latas de comida.
«Oiça, não vai dar para trazer isso a bordo!», exclamou o capitão Jackdaw.
O influencer alternava desconcertado o olhar entre ele e os assistentes. Os seguidores continuavam a tirar fotos.
«Hei! Nada de fotos minhas ou atiro os telemóveis à água!», ameaçou o capitão, visivelmente perturbado com a multidão. Nunca o tinha visto assim tão agitado. «Têm de se afastar porque precisamos de zarpar o mais cedo possível. Se não, ficamos presos com a maré.»
O influencer juntou-se aos assistentes para distribuir instruções, acompanhando a recolha dos materiais de volta para uma carrinha, reduzindo a bagagem a dois sacos de viagem e uma pilha de uma dúzia de latas.
«Quem é o novo tripulante?», perguntei.
«Um desses influencers que agora enchem a internet.», respondeu o capitão. «Chama-se Handy LOL e, pelo que percebi, é um mestre das selfies.»
«Handy LOL!!!», ouviu-se gritar ao longe.
«Pelos visto é mesmo popular, vêm aí mais fãs.», observei.
O capitão franziu a testa e olhou para o influencer, cuja face mostrava um esgar de terror tão pálido como a brancura da sua peruca.
«Não, temos é problemas. Rápido, zarpamos já! Meta o influencer a bordo!», ordenou-me.
Os seguidores estavam em delírio numa nova vaga de selfies a tentarem captar a expressão inusitada do seu ídolo, mas o influencer tentava furar entre eles em direção ao barco, numa fuga atabalhoada.
«Handy LOL!!», ouviu-se novamente, agora mais forte.
O influencer debatia-se no mar de seguidores e eu corri para ele, empurrei uns quantos à bruta para os lados para abrir alas e estiquei a mão para o agarrar. Puxei-o para mim, meti-lhe o braço à volta das costas e arrastei-o em direção ao barco, mas um dos fãs, intencionalmente ou não, arrancou-lhe a peruca. De imediato, todos os seguidores se lançaram numa luta pela peruca e só consegui vislumbrar braços e pernas à bulha e algumas penas de pavão e mechas de cabelos brancos a pairarem. A peruca distraiu-nos da multidão e empurrei o influencer barco acima para convés.
«Handy LOL, para!!»
Um grupo de meia dúzia de mulheres tinha virada a esquina em direção ao cais, liderado por uma mulher com uma boina bico de pato com cara de poucos amigos. O influencer tremeu.
«Rápido, temos de sair daqui», gemeu.
O capitão ligou o motor e eu corri a soltar as amarras. Uma das mulheres apontou na nossa direção e o grupo começou a correr para o nosso barco. De repente, tombámos no convés. O barco estava preso por uma amarra que eu me tinha esquecido de soltar. Os olhos do capitão ferviam a olhar para mim.
«Vou soltar a amarra.»
«Não há tempo, corte, corte!!», berrou-me o capitão.
Saquei do canivete de mar do bolso e cortei o cabo, mas não fui rápida o suficiente para impedir que as mulheres se lançassem ao costado do barco, agarradas ao varandim. O capitão deixou o leme fixo rumo à saída do cais e lançou-se na defesa contra a abordagem, soltando as mãos das mulheres para elas caírem na água, mas a líder de boina conseguiu alçar a perna e meter-se a bordo.
«Handy LOL!»
Saltou sobre o influencer, tombando-o no convés, e imobilizou-o com os joelhos nas costas.
«Onde é que está o meu guião? Onde é que está o meu guião?», sacudia-o agarrando-lhe a camisola.
O capitão agarrou-a pela cintura e, num movimento circular, ergueu-a e atirou-a borda fora. Ainda ecoava o som da queda na água e já o capitão estava ao leme a girar o barco para longe do cais.
«Quem é aquela maluca?», bradei.
O influencer respondeu, dirigindo-se mais à mulher, que ficava agora para trás a boiar na água.
«Uma atriz feminista radical que merece estar no manicómio!»
«Eu não sou uma atriz, sou uma escritora», vociferou a mulher a esbracejar os braços à tona da água.»
O influencer sorgueu-se a medo, agarrado ao brandal, a olhar para terra.
«Oh, não! As minhas latas de sopa, as minhas latas de sopa!»
«Temos comida a bordo, não se preocupe com isso agora», disse-lhe o capitão.
«Mas não são as sopas Campbell…»
«São Compal, têm um nome parecido. Vai ver que sabem bem»
O homem, agora careca, sentou-se exausto, dobrado sobre os joelhos.
«O que é que tem aqui preso?», perguntei, aproximando dele.
Colado na camisola, alinhado na vertical entre as omoplatas, estava um penso higiénico com alguma coisa escrita.
«O que é que diz aí?», perguntou o influencer.
Passei-lhe o penso para as mãos.
«Up your ass.»
Ao longe, ouviam-se as gargalhadas da mulher.
Que largada de Peggy Cove! No que é que este influencer estará metido? Ele está agora recolhido no camarote, a descansar, e o capitão está a controlar o leme, ao mesmo tempo que verifica o plano de viagem feito ontem. Vamos em direção a Whycocomagh, uma terra num lago da Nova Escócia, mais a norte. Se não acontecer aquelas mulheres aparecerem atrás de nós com uma lancha torpedeira!
V. Somanas
Líder do grupo feminista radical “Só Manas” (pejurativamente apelidado de “Só Mamas”), a mulher da boina de bico de pato não é uma desconhecida. Na verdade, ela ganhou os seus 15 minutos de fama ao balear um dos mais famosos artistas da Pop Art.
LOL LOL LOL
Inúmeros artistas passaram pela fábrica de Handy LOL, alguns por ele retratados, outros nem por isso. Bowie sempre teve uma grande admiração pelo artista PoP, mas não terá conseguido impressionar Handy com a canção que escreveu e que lhe apresentou pessoalmente na Factory, em Nova Iorque.
Handy LOL
Apelidado por outros artistas como “prostistuta da cultura”, Handy LOL é uma das maiores influências da arte contemporânea, a milhas de distâncias de outras figuras da internet que promovem champô para os piolhos e minissaias de sarapilheira.