Estamos no terceiro dia de viagem ao longo da costa da Nova Escócia, a navegar cautelosamente a coberto de um providencial nevoeiro que nos protegeu dos olhares das nossas perseguidoras em Peggy’s Cove. O capitão não descansou nas primeiras horas após a nossa largada, sempre a tentar manter a máxima velocidade junto à costa, com a intenção de encontrar um refúgio para as despistarmos.
«Aquilo é que são verdadeiras fãs.», ironizou o capitão.
«Ela odeia-me.», repetiu várias vezes o novo tripulante, dividindo o olhar entre nós e o horizonte à popa do veleiro.
«E tem razão para isso?»
«Ela diz que só sente desprezo por mim, por eu ter sido absorvido no capitalismo, por ter corrompido a arte de todos os meus colaboradores e por os ter manipulado e explorado.»
«E é verdade?»
«Eu sempre tive colaboradores e sempre procurei compensá-los financeiramente. Mas eu tenho muitas bocas para alimentar, é preciso pensar a arte como um negócio.»
«Não podia estar mais de acordo. A arte é um negócio e há quem ganhe muito dinheiro com isso. O engraçado é que a arte não deveria ser um negócio, mas uma produção para a comunidade usufruir.»
«Não concordo. A verdadeira arte é o negócio da arte. Ser bom a fazer negócios é o mais fascinante tipo de arte possível. As pessoas desprezam a ideia do negócio e do comércio, mas fazer dinheiro é arte e trabalhar é arte e bons negócios são a melhor arte.»
«A arte do negócio… É assim que você orienta o seu… trabalho… como influencer?»
«Eu não faço mais do que acompanhar o espírito do tempo. Olho à minha volta, vejo o que se faz na sociedade, pego nas tecnologias disponíveis e dou um passo mais à frente.»
«Como aquela coleção de selfies com os famosos?»
«Isto funciona assim: a gente conhece as pessoas ricas, sai com elas e, uma noite depois de uns copos, uma delas diz “Eu pago para tirar uma selfie contigo” e depois elas contam aos amigos que eles têm de tirar uma selfie comigo. E começa-se a estabelecer um valor. É isso.»
«O valor é estabelecido com base nos famosos envolvidos, nada tem a ver com o valor intrínseco do retrato, pelo vejo.»
E a conversa prosseguiu com uma discussão sobre conceitos de fama e valor artístico, mas Handy LoL começou a ficar progressivamente mais calado, com sinais de enjoo, e o capitão sugeriu que descansasse no camarote com a promessa de que daria o alerta ao mínimo sinal das perseguidoras.
Na primeira noite, ancorámos numa pequena enseada a coberto da ondulação do mar por uma pequena ilhota. No dia seguinte, Handy LoL refugiou-se no seu camarote, empurrado ocasionalmente até à casa de banho por enjoos e só hoje, ao terceiro dia de viagem, é que emergiu até ao convés. Eu e o capitão questionávamo-nos sobre o que o teria levado a meter-se em mares agrestes. É que, ainda que curta, a jornada até Whycocomagh levará uns 5 dias e, apesar de estarmos à vista de terra, a ondulação é tão agressiva como a que apanhámos em mar alto ao cruzar o Atlântico.
«Nunca fiz uma selfie a bordo de um veleiro no mar.», explicou-nos.
E de imediato começou, em perigosas acrobacias, a tentar tirar “selfies”.
«É melhor deixar isso para mais tarde. Quando se habituar aos balanços do barco e reforçar o seu equilíbrio, então poderá aventurar-se a tirar os seus retratos.», aconselhou o capitão.
«Não são retratos, são “selfies”», especificou.
«Não compreendo a diferença. Um retrato não é uma representação de alguém numa pose consciente de estar a ser representado?»
«Há diferenças na motivação.», interpus. «Uma selfie pode servir para formar uma identidade, interagir socialmente, fazer promoção pessoal ou por puro entretenimento. Há, pelo menos, quatro razões para fazer uma selfie: a procura de atenção, comunicar com outros, fazer o registo de um momento eventualmente num espaço específico e, como disse, simples divertimento.»
«Ou todas», disse o Handy LoL com um sorriso. «É claro que a personalidade de cada pessoa afeta a frequência e o tipo de selfies também.»
«Por exemplo, há os narcisistas, que procuram manter a sua autoestima e a imagem de si próprios através da atenção e da aprovação dos outros», exemplifiquei.
«À procura dos “likes”, não é?», apontou o capitão.
«Os “likes” sempre existiram», ripostou Handy.
«Talvez, mas não creio que houvesse tanta gente a exibir a sua aparência física e os seus bens materiais.»
«Só porque a tecnologia não o permitia. Agora, com toda a gente de câmara fotográfica na mão, e porque é mais a fácil divulgação de fotos nas redes sociais, a selfie tornou-se tão natural como respirar.», explicou Handy.
«Não para todos, pelo menos para mim não. De qualquer forma, aquilo que está a dizer é que as redes sociais permitiram a quem não tinha acesso à comunicação social apresentar as suas formas de vivência e criar comunidades alargadas. E as selfies, como qualquer meio de comunicação, são passíveis de serem politizadas e darem voz a identidades silenciadas.», observou o capitão.
Acenei em concordância.
«Certo, até aí tudo bem, mas suspeito que a larga maioria das pessoas fazem selfies sem a consciência ou a reflexão a que vocês se referem. A minha impressão é que seguem os modelos que pessoas como você», e apontou para Andy Lol, «tentam impor como sendo o que está na moda. A maioria delas tenta agradar e está disposta a exibir o que for necessário para obter atenção, visualizações ou likes ou o que seja. É como aquelas selfies com a Marylin.»
«Acho que está enganado», contrapôs Handy LoL. «As selfies com a Marylin, assim como outras, são ícones. À semelhança dos ícones da cristandade oriental, elas vão além das representações que encontramos nas fotos dispostas nas redes sociais. São selfies que se sustentam a si próprias como significações de qualidades associadas ao ícone apresentado, seja beleza, coragem, sabedoria, etc. Na verdade, aquilo que todos os influencers almejam, é criar uma selfie que seja icónica.»
«É essa verticalização da selfie que me assusta. Não me leve a mal, mas os influencers são meros comerciantes.»
«Sim, eu sou uma pessoa comercial, sou um produto, uma marca.», concordou Handy.
«E promovem os produtos daqueles que os contratam. E, para tal, criam imagens que depois são replicadas pelos seguidores, imagens essas que, em muitos casos, não são reais, embora sejam apresentadas como tal. As selfies de que fala procuram apresentar aquilo que a sociedade diz que nós devemos tentar ser. E para isso, apagamos aquilo de que não gostamos e editamos aquilo que nos parece imperfeito, pondo de parte a autenticidade. Mesmo naquelas selfies em que as pessoas não aparecem a fazer cara de pato, a incharem o peito ou a espetarem o cu para fora, há uma pressão para se acomodarem aos ícones vigentes.»
«As palavras que usa e o modo como as apresenta denotam uma profunda repulsa, capitão, mas as selfies permitem democratizar o espaço de comunicação e a própria representação do ser humano, em particular das mulheres.», argumentei.
«Concordo, mas você acredita que esse é o papel predominante da selfie no dia a dia?», perguntou o capitão, a ficar visivelmente agitado. «Um meio tecnológico por si só não é revolucionário a não ser que seja usado para revolucionar algo. Talvez você seja demasiado nova, mas na década de 70 várias artistas – vêm-me à cabeça nomes como Martha Rosler, Carolee Schneemann, Lynda Benglis – questionaram o espaço de comunicação e a representação das mulheres, como você diz, de um modo revolucionário. Cinquenta anos depois, a única revolução que vejo nas selfies femininas hoje em dia é do silicone.»
Aos poucos comecei a ver o Handy LoL a encolher-se assustado.
«O que foi, Andy? Pelo seu olhar, deve estar a pensar que eu estou feito com a sua fã, não é? Não se preocupe, eu não o vou atirar aos tubarões para o devorarem. Não somos piratas.», riu-se o capitão.
O influencer lá descontraiu novamente e pouco depois largámos ferro e jantámos tranquilamente. E não resistimos a tirar uma selfie todos juntos ao pôr do sol.
V. Somanas
Líder do grupo feminista radical “Só Manas” (pejurativamente apelidado de “Só Mamas”), a mulher da boina de bico de pato não é uma desconhecida. Na verdade, ela ganhou os seus 15 minutos de fama ao balear um dos mais famosos artistas da Pop Art.
LOL LOL LOL
Inúmeros artistas passaram pela fábrica de Handy LOL, alguns por ele retratados, outros nem por isso. Bowie sempre teve uma grande admiração pelo artista PoP, mas não terá conseguido impressionar Handy com a canção que escreveu e que lhe apresentou pessoalmente na Factory, em Nova Iorque.
Handy LOL
Apelidado por outros artistas como “prostistuta da cultura”, Handy LOL é uma das maiores influências da arte contemporânea, a milhas de distâncias de outras figuras da internet que promovem champô para os piolhos e minissaias de sarapilheira.