Acordei cedo hoje. O mar ainda estava escuro, o céu com leves traços de lavanda da madrugada espelhados num mar calmo como não tínhamos ainda encontrado nesta viagem. Ficámos em Kellys Cove, uma pequena enseada junto a New Campbellton, um lugarejo com uma dúzia de casas no lado norte da Nova Escócia, na entrada para os seus lagos interiores. Parámos aqui porque tem um pontão onde pudemos deixar Andy LoL em segurança, sem sinal das suas perseguidoras, pronto para seguir em direção a New Glasgow e daí de regresso ao seu estúdio em Nova Iorque. Com ele foi o inseparável smartphone cheio de novas selfies tiradas a bordo de um veleiro ao largo da costa oceânica que ele irá transformar em arte e de arte em dinheiro.
O pontão era também o ponto de encontro com o próximo membro da tripulação. «Chega amanhã de manhã, é uma professora primária que veio fazer uma caminhada em Cape Dauphin e que aproveitou a nossa passagem para regressar a casa a velejar.»
Estava ainda a dissipar-se o vapor quente do primeiro café quando vi um vulto a sair do arvoredo e a caminhar ao longo da estrada rumo ao pontão.
«Aí está a nossa convidada.», murmurou o capitão, vindo do salão interior, inspirando o ar fresco e enchendo a caneca de café.
A mulher aproximou-se do nosso barco, passos curtos e rápidos, com uma tranquila expressão de quem está confortável a caminhar. O capitão recebeu uma mochila enorme e passou-lhe a mão para a ajudar a subir a bordo.
«Uff, o que é que traz às costas?», sorriu o capitão.
«Sabe como é, um pouco de tudo só para o caso de ser necessário algo.»
A resposta deixa-me na mesma. Tanto podia ser material de campismo como um carregamento de substâncias estupefacientes, mas a senhora não parecia ser traficante. Tinha mesmo cara de professora primária, uma expressão de atenta complacência.
“Obrigada por me levarem a Whycocomag,” disse, sentando-se à popa com as mãos levemente cruzadas sobre os joelhos. «A distância é curta, mas só chegaria amanhã ao final do dia. E assim, chego mais cedo e tenho uma perspetiva diferente do percurso que fiz para cá.»
«Veio a pé até aqui? Ainda são uns 100 quilómetros.»
«Sim, um pouco menos. Mas vim com calma, fui acampando ao longo do caminho em várias noites.»
«Sozinha?», perguntei, com algum espanto. Ela parecia já ter uma certa idade.
«Sim, gosto da solitude, propicia a introspeção de que necessito para a minha poesia.»
«Ah, é poeta? Pensava que era professora.»
Pareceu ficar a refletir durante uns segundos sobre potenciais conflitos entre as duas atividades.
«Na verdade, pode-se dizer que sou uma educadora em ambos os ofícios. A diferença está nos instrumentos usados.»
O Capitão Jackdaw acenou com a cabeça e ofereceu-lhe um leve sorriso. «Boa companhia, em qualquer um dos casos,» disse ele. «Ainda não tínhamos recebido uma poeta a bordo. Será bom conhecer uma voz desta terra.»
Ela assentiu. «Às vezes é difícil para as pessoas entenderem quanto da minha terra eu carrego comigo.» Olhou para a mochila depositada no convés. «É algo vivo, a nossa terra, o nosso povo.» Os olhos escureceram um pouco ao olharem para a costa. «Ainda estamos a lutar para mantê-la viva, contra tudo o que diz que a deveríamos esquecer.»
O peso das suas palavras parecia ter assentado como lastro na nossa embarcação. O capitão levantou-se e deu-me instruções para içarmos o balão. O Nómada voltou a ganhar balanço, a deslizar no mar liso ao longo da costa iluminada pelo amanhecer como uma figura a ser desenhada progressivamente num quadro. O céu tinha passado gradualmente dos tons rosados e alaranjados para o azul vibrante de um dia claro. O balanço suave do Nómada e o som das ondas a bater contra o casco criavam uma atmosfera de paz.
Rita interrompeu o silêncio, como se se tivesse lembrado de algo de repente.
«O povo Mi’kmaq sempre esteve aqui, muito antes de esta terra ser chamada de Nova Escócia,» começou. «Mas, depois de tudo, de todas as línguas tiradas de nós, o mundo vê-nos agora como como um ornamento, uma peça de decoração folclórica, uma história perdida na história. Mas as nossas histórias não estão perdidas.» Ela fez uma pausa, a observar as mãos. «Elas ainda estão aqui, vozes sepultadas esperando por alguém para as desenterrar.»
Virou-se ligeiramente sobre si própria em direção à costa, como se vislumbrasse nas ondas uma uma voz saída de terra a reverberar como um eco atirado da margem até nós, as mãos ligeiramente erguidas acima dos joelhos numa espécie de feitiço, um canto ancestral intricado de memória, protesto e celebração.
Um ensurdecedor rugido mecânico interrompeu a nossa contemplação. Emergindo velozmente de uma das pequenas colinas, um hidroavião surgiu com o motor a roncar tão alto que parecia vibrar tudo à volta. O avião voou na nossa direção, perigosamente perto da superfície da água, e só tivemos tempo de nos deitar no convés.
«Mas que m…», expeliu o capitão, já em pé, a observar o aparelho a afastar-se e depois a fazer uma volta apertada, como se estivesse a lutar para se manter estável, oscilando para um e para outro lado.
«O motor está a falhar!» gritou Rita, apontando para um pequeno rasto de fumo que começava a sair da lateral do hidroavião. Observámos, boquiabertos, o aparelho a passar novamente por nós, desta vez mais ao largo, mas suficientemente próximo para se ver a expressão tensa do piloto.
«Ele vai tentar pousar na água,» disse o capitão Jackdaw. «Rápido, vamos recolher as velas», ordenou.
Com destreza, o piloto do hidroavião conseguiu amarar a aeronave na superfície do lago, mas era óbvio que a situação estava longe de estar segura. Assim que tocou na água, um denso fumo negro começou a sair de um dos motores, espalhando-se rapidamente pelo céu como um tubo escuro de fuligem.
O capitão ligou o motor e começou a manobrar o veleiro, enquanto eu atirava o balão para o interior do barco pela janela da proa e recolhia a vela grande.
«Tire o extintor que está dentro desse compartimento», ordenou o capitão. Rita agarrou um extintor de incêndio e retirou duas boias de salvamento.
Quando o Nómada se aproximou do hidroavião, os dois pilotos já tinham abandonado o cockpit, atirando uma balsa salva-vidas que se insuflou automaticamente em segundos. Um deles lançou-se para o interior, enquanto o outro, visivelmente mais lento, aguardou até o bote estar estável para colocar um pé e depois o outro no interior.
O piloto mais ágil começou a remar com vigor na nossa direção, enquanto o outro ajudava com outra pagaia, mas rapidamente o capitão já nos tinha levado junto deles. Colocou o veleiro ao lado do bote, estendendo um cabo que os pilotos conseguiram agarrar com força. «Vamos tirar-vos daqui!» disse ele, ajudando-os a subir a bordo, enquanto eu punha o Nómada a toda a força à vante. Ainda estávamos a pouca distância do aparelho quando um estalido assustador ecoou pela superfície das águas. O fumo intensificou-se, seguido de pequenas chamas que começaram a surgir nas laterais do hidroavião.
«Todos abaixados!» gritou o capitão.
Uma explosão abafada lançou destroços e faíscas para a água ao redor. Por sorte, foi contida na traseira do hidroavião, e o bote de borracha que os pilotos haviam usado continuava a flutuar a poucos metros. Com a respiração ainda contida, observámos o hidroavião, parcialmente em chamas, a afundar-se lentamente no lago.
Respirando fundo, o capitão virou-se para os pilotos resgatados e disse: “Parece que tivemos sorte. Estão todos bem?» Os dois homens, ainda abalados, assentiram em silêncio. O mais jovem, encharcado e visivelmente frustrado, explicou em rápidas palavras que estavam a testar um hidroavião quando tinha surgido um problema mecânico. O outro, mais velho, alto, com cabelos prateados e um perfil distinto, manteve-se em silêncio, como se estive a refletir sobre o sucedido.
Rita Joe parecia reservada em relação a eles, o olhar cauteloso, talvez incerta sobre estes passageiros inesperados.
«O melhor será levar-vos a terra e comunicar o acidente às autoridades. Os destroços podem ser perigosos para a navegação e será necessário assinalá-los até serem removidos», comunicou o capitão, mãos no lemes e olhos entre o horizonte e a consola da chartploter, à procura do melhor local para acostar a terra.
«O meu assistente tratará desses procedimentos. As autoridades estarão à nossa espera para tornar tudo mais rápido e não interferir na vossa jornada», disse o homem mais velho.
Seguindo as instruções do homem de cabelos brancos, acostámos num pontão chamado Ross Ferry, onde três carros da polícia já esperavam por nós. A visão das luzes de emergência deixou-me desconfortável. Não era a única. Rita Joe cerrou a boca, levantou-se no poço e olhou para o salão interior, na direção da mochila segura contra a base da mesa, e depois para mim, sentando-se a seguir no assento à popa, as mãos sobre os joelhos, numa posição que me lembrou a postura encolhida das crianças em antigas fotografias de salas de aula.
Ficámos as duas no barco, a aguardar, enquanto o capitão e os dois homens conversavam com os polícias em terra, apontando algumas vezes em direção ao local onde o hidroavião caíra. A certa altura, o homem mais novo ficou bastante agitado, provavelmente a relatar o sucedido com gestos bruscos a mimetizar as manobras que tinha feito e, de braços abertos, os movimentos do hidroavião no ar. Alguns polícias levavam as mãos à testa, parecendo impressionados com o que estavam a ouvir, mas um deles, de casaco mais escuro, que devia ser o líder do grupo, olhou para nós umas quantas vezes e, por fim, interrompeu o relato do outro homem e dirigiu-se diretamente ao capitão, apontando na nossa direção. Os dois caminharam para junto do barco e o polícia subiu a bordo.
«Professora Rita Joe!», exclamou.
«Olá, Gabe, como estás?»
«Estou bem, professora. E a professora, veio passear de barco?»
O polícia fez a pergunta ao mesmo tempo que se virava para o interior do barco.
«E veio de mochila?», perguntou, virando o olhar para a nossa companheira de viagem ainda antes de ouvir a sua resposta.
Rita fez um ligeiro aceno de entendimento para mim.
«Fiz uma caminhada até Cape Brenton e acampei na montanha.»
«É verdade, nós encontrámo-nos em New Campbell», acrescentei.
O polícia ignorou-me.
«Sozinha, professora?»
«Sim, sozinha. Já sabes que eu gosto de me isolar na Natureza de vez em quando.»
As palavras eram coloquias, mas havia uma tensão entre eles.
«E agora vai para onde, professora?»
«Vou de regresso para casa com a tripulação deste barco.»
«Não prefere que a gente a leve a casa num carro-patrulha, depois da emoção deste acidente?»
«Eu estou segura com eles, obrigado. E tenho tempo, não me falta tempo na vida.»
O polícia sorriu, as bochechas empurrando os óculos espelhados que nos encadearam com o reflexo da luz do sol.
Sem dizer mais uma palavra, o polícia regressou a terra e seguiu com o capitão para um dos carros. O homem de cabelos brancos juntou-se a eles, sentou-se no banco traseiro com as pernas para fora, a porta aberta, enquanto o polícia parecia tomar notas em documentos seguros numa prancheta com uma mola dourada.
«O Gabe não é mau rapaz, mas leva o trabalho de chefe da polícia demasiado a sério.», explicou de repente Rita. «Na cultura local, não basta ser polícia, é preciso parecer polícia.»
«Compreendo.»
E aqui estamos à espera. Aproveitei para pegar no computador e mandar-te uma mensagem antes que os detalhes do que aconteceu se tornassem menos claros. Rita está sentada, impávida, mas eu consigo sentir uma tensão na forma como ela mantém o troco direito. E dei por ela a olhar para o interior do salão, na direção da mochila. Será que ela transporta algum contrabando? Ou algo ainda mais ilegal? Os polícias continuam lá fora, em conversa com o homem de cabelo branco e o capitão. Vamos ver se saímos daqui hoje ou se temos de ficar por causa de um qualquer procedimento oficial. É esse o problema dos acidentes: não basta serem trágicos, são também burocráticos.

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