Vozes Enterradas

Jul 1, 2024

 

Afinal, não demorou muito a prosseguirmos a viagem, livres dos polícias. O homem de cabelo branco parece ter uma certa influência sobre as autoridades locais.  

O capitão regressou com ele ao barco, sorridente. «Temos connosco um novo tripulante. É um prazer receber a bordo o reconhecido inventor Alexander Bell», disse, ao que o homem correspondeu com um aceno e uma saudação com uma voz suave e segura. A expressão da Rita não revelou qualquer surpresa.

O Capitão Jackdaw deu-lhe as boas-vindas, com a sua habitual cortesia, sem conseguir evitar olhar para mim com uma expressão que dizia “Sabias que este era o Alexander Graham Bell?”. Dei-lhe um ligeiro encolher de ombros; era novidade para mim também. Bell acomodou-se num dos assentos à popa, enquanto eu e o capitão fazíamos a largada do Nómada.

«Esta é a professora Rita Joe.», apontei.

«A poeta? Muito prazer em conhecê-la pessoalmente. Somos vizinhos e nunca nos tínhamos cruzado até agora», observou Bell.

A nossa convidada acenou com a cabeça, deixando-se estar sentada a observar o novo tripulante, em silêncio.

«Sempre achei fascinante ver como a língua e a comunicação estão entrelaçadas com a cultura» disse Bell, em tom reflexivo. «Tenho a profunda convicção de que é através da linguagem que encontramos a nossa verdadeira conexão uns com os outros.»

A testa de Rita franziu ligeiramente.

«Sim, a língua é vital. Mas essa conexão de que fala é muitas vezes uma luta de poder também,» disse ela, com voz calma, mas firme. «Quando um grupo insiste que a sua língua deve substituir a de um outro, os laços não são de respeito mútuo. São amarras de controle.»

Bell permaneceu em silêncio, talvez surpreso pela resposta à afirmação que tinha feito, provavelmente com a intenção de ser um elogio. Depois, num tom ainda mais suave, disse reconhecer a importância do respeito da língua como defesa da identidade de uma comunidade.

«Muitos não sabem, mas quando eu tive os primeiros contactos com membros das Seis Nações, aprendi a língua Mohawk e traduzi vocabulário desta língua para o sistema de transcrição fonética que o meu pai criou, o Visible Speech. Dancei com os Mohwak e até fui feito Chefe Honorário.»

A última frase foi dita com um sorriso, levando a mão ao peito, num visível sinal de respeito dirigido a Rita.

«Aquilo que disse não foi uma alusão ao problema das línguas nativas e do inglês, embora essa seja uma questão interligada. Estava a referir-me ao trabalho que você fez nas escolas para surdos.», ripostou a Rita.

O olhar de Bell mostrou surpresa e uma sombra tênue parecia ter passado pelo seu rosto.

«Está a referir-se ao meu trabalho de promoção do oralismo na comunidade surda? O objetivo foi ajudá-los integrarem-se. A capacidade de falar poderia abrir-lhes portas na sociedade. Esta é uma matéria de cariz pessoal. Não sei sabe, mas a minha mãe era surda e a minha esposa é surda e consegue ler nos lábios e comunicar com sons.», disse.

Rita atalhou, debruçando-se na direção de Bell.

«A verdade é que lhes foi negado o direito de escolherem a sua própria língua, forçados a adotarem uma identidade numa sociedade que não os queria reconhecer. Uma gentileza com um tom de imposição, não acha?»

Bell mexeu-se no assento, os ombros contraindo-se.

Os olhos de Rita brilharam com uma espécie de fogo quieto. «Essa é a típica perspetiva paternalista com que se revestiu também o colonialismo. em que a supressão da língua é uma ferramenta de domínio e controlo. O resultado, como revelou o trabalho de Frantz Fanon, é que os colonizados, frequentemente forçados a adotar a língua e a cultura dos colonizadores, têm um sentido de identidade fraturado.»

Rita abanou a cabeça suavemente, o olhar sem vacilar. «Sabe, Sr. Bell, em muitos aspetos, a experiência da comunidade surda espelha a dos povos indígenas no Canadá. Ambos fomos privados das nossas línguas e forçados a uma integração linguística. O governo forçou as crianças a irem para escolas onde a nossa língua, a língua Mi’kmaq, era proibida. Tiraram de nós o direito de falar, de nos conhecermos nas nossas próprias palavras.»

Fez uma pausa e depois, como se estivesse a ecoar uma voz vinda do interior do seu corpo, recitou um verso de um poema, em voz baixa, mas firme.

«Eu perdi a minha fala / A fala que me tiraste.»

As palavras pairaram no ar, e eu podia ver que Bell estava visivelmente comovido, a sua compostura afetada. Ele assentiu, um traço de arrependimento a colorir a sua expressão.

«Cada língua carrega o seu próprio mundo, a sua própria forma de entender e relacionar-se com o mundo.», concluiu Rita.

«Está a referir-se à hipótese de que a estrutura de uma língua influencia a cognição e a visão do mundo dos seus falantes?», questionou o capitão.

«A língua não é apenas uma ferramenta de comunicação,» enfatizou Rita. «É uma lente através da qual vemos a realidade. A língua que falamos molda a forma como percebemos e interagimos com o mundo ao nosso redor.»

A conversa ganhou uma dimensão mais técnica, com referências a políticas de língua e a casos legais, como um famoso processo promovido recentemente nos tribunais por uma firma americana de advogados chamada Sapir-Whorf.  Depois, focou-se na poesia, nas tradições e, inevitavelmente, no contraste entre a vida ancestral e as novas tecnologias.

«Recuso-me a ter um desses aparelhos para comunicar. Por muito que possam ser úteis em situações de emergência, são intolerantemente disruptivos, uma constante distração no meu trabalho. Quem inventou esses aparelhos não tinha ideia do que estava a criar no futuro.»

A segunda parte viagem foi tranquila, nem demos conta de o tempo a passar. Ao entardecer, estávamos a chegar ao nosso destino. O capitão fez-me sinal para preparar a palamenta para a ancoragem, reduzimos a velocidade e entrámos lentamente numa pequena enseada com uma ilha verdejante no lado poente, onde o sol se preparava para se esconder atrás das montanhas no fundo do horizonte. Rita e Bell continuavam a conversar, indiferentes às nossas manobras, até o “Nómada” estar completamente imobilizado, agarrado à ancora.

«Posso convidar-vos para um jantar tradicional?», perguntou-nos a Rita, de mochila ao ombro.

Bell respondeu com um sorriso guloso. «E podemos ter um pouco de Lusknikn? Não consigo resisti ao cheiro de Lusknikn acabado de fazer!»

«Claro, tenho doces e molhos salgados para acompanhar», disse a Rita, com um piscar de olho.

Seguimos para a costa no nosso pequeno bote, que deixámos amarrado perto de um pequeno pontão, e não demorou muito até conseguirmos boleia numa carrinha de caixa aberta que passava na estrada junto à costa. Passámos a rotunda da entrada para a rua principal de Whycocomagh, junto à loja Farmer’s Daughter, e seguimos em direção a Lake Ainslie. O condutor, um conhecido de Rita, pelo que percebi, deixou-nos na estrada junto a um caminho de gravilha. Rita lançou-se de imediato na caminhada pelo troço, informando-nos de que não demoraria mais de 5 minutos. Segui-a de perto, enquanto o capitão ficava mais atrás com Bell, um pouco mais lento no passo. A mochila de Rita, oscilando nas suas costas, rasgou subitamente numa costura e começou a vazar terra.

«Rita, a mochila…»

Ela parou, colocou a mochila no chão, passou uma das cintas à volta da zona onde a costura abrira um pouco e voltou a colocar o saco às costas. Fez-me sinal com a cabeça para a seguir e sussurrou para que os outros não a ouvissem.

«É apenas terra.»

«Terra?»

«Sim, nada mais do que isso.»

«Mas porquê?»

«Recolho-a nas minhas caminhadas e trago-a aqui para a usar nas plantas que tenho na quinta. As vozes do meu povo são este húmus.»

A casa de Rita estava vazia. A família tem estado fora, em viagem, explicou-nos, e por isso convidou-nos para passar a noite, se quiséssemos descansar sem balanços, o que prontamente aceitei antes que o capitão tivesse tempo de intervir. Depois de um dia tão agitado, merecemos um descanso com menos oscilação.

O jantar está pronto e vou juntar-me ao resto do grupo. A Rita foi simpática em me deixar usar o computador dela para te escrever. Não sei bem para onde vamos a seguir, acho que seguimos para norte, pelo que percebi da conversa do capitão, mas em breve dou novidades.

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Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.