Desculpa a longa mensagem, mas tu és a única pessoa a quem posso contar isto. Estou a tentar seguir o fio da memória e sair deste labirinto mental em que caí ontem. Sinto-me emaranhada num início in media res, indecisa sobre o que precipitou os acontecimentos das últimas horas e a sentir que já estou no meio de uma coisa qualquer que não sei quando é começou.
Se há um início, acho que foi ao final da tarde de ontem, no meio das estantes da biblioteca de Setúbal, no andar de cima. Estava a escolher uns livros para ler em casa, de cabeça em torcicolo a tentar ler os títulos nas lombadas, em lenta progressão lateral ao longo das estantes de literatura inglesa. Nas últimas semanas, decidi revisitar alguns clássicos e estava de livros apertados contra o peito quando detetei o último título da minha lista mental: Alice no País das Maravilhas. Lancei a mão para o abrir e antecipar o gozo do poema Jabberwocky, mas ao puxar a lombada ouvi um som ciciante e fiquei encandeada com uma súbita claridade. Quando recuperei a visão, estava no outro lado da estante, na secção de literatura alemã, e tinha nas mãos A História Interminável de Michael Ende!
Nisto, o telemóvel vibrou. Era uma mensagem da minha chefe, um meme com um coelho branco a avisar-me que tinha de enviar o trabalho sem falta até ao final do dia. «Oh dear, I’ll be so late!». À pressa, passei em revista os livros que tinha recolhido e vi que afinal sempre tinha tirado da estante o de Lewis Carroll. «Será que sofri um lapso de consciência?», questionei-me.
Não podia ficar ali a tentar perceber o que se tinha passado, tinha de me despachar. Por isso, peguei no saco de linho que tinha deixado junto das mesas de leitura com os livros para devolver e dirigi-me à bibliotecária, a equilibrar contra o peito os volumes a levar para casa. O que vale é que nas bibliotecas toda a gente tem mais que fazer do que perder tempo a ver as figuras que os outros fazem, reais ou filmadas.
Ao longe, não reconheci a cabeça escondida atrás do monitor do computador, mas ao chegar junto da secretária, senti as forças faltarem-me nas pernas. Em vez de uma das minhas conhecidas, era uma nova bibliotecária – cinquenta e poucos anos, gordinha, com cabelo branco – a processar qualquer coisa no computador com um estranho sorriso. Todos os livros que ia devolver estavam atrasados e contava com a implícita clemência nos contratos de obrigações promovida pela familiaridade entre pessoas conhecidas. Agora, já me via a argumentar o meu caso com… tentei ler a placa de identificação em cima da secretária…. Ms. Lortz. Ms Lortz?!?!
«Pode vir aqui, não se preocupe em me interromper»
Um medo instintivo pregou-me ao chão, mas forcei-me a dar ordem de marcha, enquanto tentava fazer sentido de tudo. Ms. Lortz!… Só pode ser uma coincidência! Era o nome da aterradora bibliotecária da história de Stephen King, a mesma que avisava ameaçadoramente cada leitor com o Polícia da Biblioteca, uma espécie de monstro que castigava os meninos e as meninas que não entregassem os livros dentro do prazo. E agora, era à sua sósia que tinha de devolver os volumes atrasados mais de duas semanas!
Preparei-me mentalmente para levar um ralhete público na biblioteca. Nada mais constrangedor do que ser chamado à atenção em frente de todos os leitores, a fingirem estarem muito concentrados na leitura, mas com os olhos paradinhos, a ouvirem, com um certo sentimento de desagravo, a aplicação impiedosa do corretivo. Isso e mais a multa que provavelmente iria pagar. E sendo ela Ms. Lortz, o meu maior medo era o morto-vivo que ela conjurava para assombrar aqueles que não entregam os livros a tempo e horas.
«Isso é só para aqueles que destroem livros.», apontou. «Esses é que têm de pagar livros. Quem reincide no atraso,» acrescentou, elevando um pouco mais a voz num aviso geral, «a penalidade é uma suspensão da leitura domiciliária.»
Senti um ténue burburinho de medo atrás de mim e deixei-me ficar hirta, a ver se ninguém me reconhecia pelas costas. Ms. Lortz, isto é, a nova bibliotecária pegou na pilha para levantamento e começou a processar os empréstimos. Com gestos delicados e um sorriso colado a Araldite, olhava para a capa a ajuizar o livro, mas não consegui perceber se desaprovava as minhas escolhas ou se as ratificava. O seu olhar frio e penetrante estava em sinistra dessintonia com a amabilidade que exibia.
Antes de ela pegar nos livros para devolução, tentei criar uma certa empatia, mas o meu cérebro ludibriou-me na pergunta.
«Conhece o livro The Library Policeman?»
Com a boca fez um sorriso manso, todavia o olhar parecia capaz de projetar matéria cinzenta pela zona occipital do crânio. Abanou lentamente a cabeça.
«É um livro que deseja consultar?», questionou, pegando na caneta, o olhar a queimar-me o cérebro.
Resisti um pouco e balbuciei.
«Não, é só que.. É um livro do escritor Stephen King.»
«Ah!», exclamou, retomando o trabalho de registo dos títulos. «Se tivermos, está na secção de literatura americana.» E depois acrescentou, com traços furtivos de desdém na voz. «Não conheço, não sou dada a esse género de textos.»
Senti que a tinha antagonizado. Porque é que perguntei sobre o livro? O que é que eu podia fazer agora?
Vi-a pegar nos livros para devolução. Acossada por um terror crescente, tentei manter-me em pé junto à secretária, a vê-la a verificar, com a meticulosidade de um cientista forense, a condição de cada livro devolvido, capa e contrapa, interior e lombada, soltando depois um suspiro e pequenos estalidos de reprovação cada vez que confirmava no computador que a data de devolução já tinha expirado. Tudo muito lentamente e sem olhar uma única vez para mim.
Sabes que quando começo a ficar ansiosa, começo a mexer-me. Virei costas ao lento processo alfandegário dos livros, afastei-me até à janela do salão de leitura e lembrei-me então de espreitar o meu carro. Na pressa, tinha arriscado estacionar defronte da biblioteca sem bilhete e sem conseguir ativar a aplicação de estacionamento. E certo como o pão com manteiga cai com o lado barrado no chão, lá estava o sacana do fiscal a passar uma multa!
«Está tudo em ordem, tenho a certeza! Tenho de ir, depois passo para levantar os talões dos outros livros!», disse num folego, em corrida para fora do salão, tão rápida que nem dei oportunidade para qualquer protesto da Ms. Lortz.
Demasiado rápida, talvez, pois não consegui parar a tempo, já no início das escadas, para evitar a colisão com um homem de mão suspensa ao peito, vestido com estranha bata de azul vivo com uma grande cruz dourada desenhada em filigrana à altura do peito.
«Mil perdões!», suspirei, com receio de lhe ter provocado uma nova mazela. Qualquer que tenha sido o acidente que lhe imobilizou o braço, não lhe tirou a capacidade de praguejar em voz alta.
«Mil co… Mas isso são maneiras de andar numa biblioteca?! Deve vir da província!»
Fiz um gesto com a mão no coração e tentei prosseguir a marcha. Quem fala assim não precisa de assistência médica.
«Você é assim tão rude que vira costas sem se desculpar decentemente?»
«Acho que me desculpei de forma correta. Lamento, mas estou com pressa.»
«Se está com pressa, então podemos ter uma conversa quando lhe for mais conveniente para que eu veja um verdadeiro arrependimento.»
Que raio de conversa era aquela? Estava a ficar exasperada com o tempo e tinha de evitar apanhar uma nova multa de estacionamento, por isso atirei com uma resposta rápida.
«Amanhã, às seis da tarde, à entrada da biblioteca.»
«Muito bem. Eu vou saber quem você é, se não aparecer, vai ficar suspensa de entrar na biblioteca!», ameaçou-me em voz alta, à distância, a ver-me descer cada vez mais depressa.
Chegada ao andar térreo, deparei-me com duas mulheres, uma delas de grandes proporções, ambas paradas no meio do átrio da entrada, numa conversa molenga como se fossem guardas republicanos incumbidos de uma operação stop numa estrada municipal. Decidida a não esperar que se desviassem do caminho, e pensando que dava para me esgueirar entre elas, prossegui a minha marcha em direção ao interruptor de abertura da porta de vidro da entrada principal. Nisto, a mais alta e avantajada moveu em arco um dos braços para vestir o casaco. Para evitar dar-lhe um encontrão, girei sobre mim própria, mas na manobra acabei por lhe arrancar o casaco, projetando-o no chão. A outra mulher pegou na peça de roupa, fez um sorriso de escárnio e ofereceu-a de volta à mulher.
«Aqui tens o teu blazer, Xana, mas acho que lhe caiu um “t” do Vuitton…»
A mulher envermelhou-se de raiva como se fosse cuspir fogo e levei na cara com mais uma saraivada de acusações de falta de civismo. «Não sabe abrir os olhos?!»
Olhei para o casaco no chão, levemente irritada com o seu tom de voz. «Vejo muito bem. Bem melhor do que pensa, até consigo ver a etiqueta…», respondi em provocação.
A cara dela ficou ainda mais inchada.
«Em vez de pedir desculpas, ainda faz pouco dos outros?»
Parecia que estava a ouvir um disco riscado. Quer raio de obsessão era esta com os pedidos de desculpa? A mulher cravou os olhos em mim e eu fiquei pregada ali, a querer sair o mais rapidamente possível.
«Lamento, estou cheia de pressa. Noutra altura dou-lhe todas as desculpas que quiser.», disse para a calar, a tentar mover-me em direção à porta. «Amanhã, às seis e meia da tarde, à entrada da biblioteca.», sugeri.
«Muito bem, amanhã, às seis e meia.»
Virei costas, pressionei o botão e fugi para o exterior mal a porta automática começou a abrir.
«Eu vou saber quem você é se não aparecer, vai ver que não volta a pôr os pés nesta biblioteca», ouvi-a gritar ao longe.
Cheguei junto ao carro e o fiscal já lá estava, dobrado a mirar a matrícula do meu carro.
«Desculpe, este é o meu carro. Não tinha moedas para pôr no parquímetro, vim só entregar livros à biblioteca.»
Fitou-me com aquele sorriso dos estronços quando pensam estar a “dominar a cena”.
«E a aplicação?»
«Estava bloqueada, não arrancou.»
«Se calhar não está bem instalada.» disse, com um sorriso que se alastrou imbecilmente para os lados da face. Puxou do telemóvel como se fosse escrever algo. «Não me quer dar o seu número para enviar as instruções de instalação?»
Olhava para mim, seguro na sua pose de anúncio de desodorizante e no corte de cabelo à cromo da bola.
«Prefiro a multa, se faz favor. Rápido, estou com pressa.»
Amuado, puxou da máquina de registo que tinha pendurada numa bolsa à cintura. Um homem com livros na mão, também saído da biblioteca, aproximou-se. Enquanto esperava pela impressão da multa, senti a necessidade de partilhar em voz alta um protesto sobre a injustiça de que estava a ser alvo.
«Não percebo porque é que não há um estacionamento rotativo para a biblioteca. Há tantas facilidades para outros serviços, porque não aqui.», disse, a aguardar um aceno de concordância por parte do outro homem, que agora reconhecia ter visto, momento antes, a selecionar livros na sala de leitura. «E aposto que há aí gente que estaciona o carro para fazer compras na baixa e não paga. Estacionam aqui em frente da biblioteca, não pagam, nem usam a biblioteca, como esse aí, por exemplo, também não tem bilhete.»
O fiscal olhou para o carro do lado.
«Por acaso, este também não pagou. Já lhe trato da saúde.»
O homem com os livros na mão atirou-me uma expressão de desdém.
«Era preciso fazer isso? Ajudou-a a restabelecer o seu equilíbrio emocional? O seu sentido de justiça? Ainda não superou as práticas do jardim de infância?»
Fiquei calada, incapaz de encontrar qualquer justificação.
«Você devia era pedir desculpa pela sua conduta!»
Outra vez o mesmo disco.
«Amanhã, às sete da tarde, à entrada da biblioteca.», atalhei.
«Ahn?» O homem olhou para mim com cara de espanto.
«Amanhã, às sete da tarde, à entrada da biblioteca, eu peço-lhe desculpas. Agora, com a sua licença, tenho de tratar de outros assuntos»
Quando me virei para o fiscal, ele já tinha desaparecido, mas a multa lá estava no para-brisas.
Espera, tenho uma chamada. Já volto a falar contigo.
A Biblioteca de Setúbal , situada na Avenida Luísa Todi, é um dos espaços mais livres da cidade: permite a consulta gratuita de jornais, revistas, livros, álbuns de música e filmes – há mais filmes e livros sobre cinema disponíveis no museu Casa das Imagens Lauro António, mesmo ao virar da esquina.
Fahrenheit 451, escrito por Ray Bradbury, é um clássico da literatura de ficção científica. A história tem lugar numa sociedade distópica onde os livros são proibidos e queimados por bombeiros.
Aspirações embrulhadas em livros
A banda indie pop escocesa “Belle and Sebastian” é conhecida pelo som cativantes das suas melodias suaves, mas são as letras introspetivas que mantém a nossa atenção.