Deixou o dinheiro preso sob o prato vazio das bifanas, ajeitou o chapéu gasto na cabeça e, com um pequeno suspiro de velhos ossos, pegou na bengala e saímos da Adega dos Frades a sacudir algumas persistentes migalhas do peito. Segui-o rumo ao Terreiro de Santo António, naquele seu passo arrastado que eu conhecia desde sempre, até pararmos defronte da capela com o nome do mesmo santo — uma construção singela, de pedra clara, o frontispício marcado pela erosão dos anos, a porta de madeira escura, maciça.
Apontou com o queixo para o templo.
«A definição da identidade nas teologias dominantes parece ter passado sempre por uma persistente negação do eu, do self, como quiseres chamar-lhe. Os cristãos, com as suas almas imortais criadas à imagem de um Deus, vivem a angústia do eu que só depois de purificado é que será acolhido no seio divino. É uma folha manchada que se quer tornar branca outra vez. Para os muçulmanos, o self é plural e ambíguo: o nafs inferior, que se perde nas tentações do mundo, e o nafs purificado, que obedece à vontade de Deus. Nesta guerra interior constante – a jihad al-nafs –o verdadeiro triunfo é a submissão ao Divino. Quanto aos judeus, a coisa é de outra natureza. És o teu compromisso com Deus e com a comunidade. Não há separação entre o ser e o agir. O pacto, a aliança, é o que te define — não uma essência interior, mas a tua história, o teu cumprimento da justiça e da memória. No hinduísmo, o Atman, o verdadeiro eu, é eterno e idêntico ao Brahman, o absoluto. Quer dizer que, no fundo, cada um é parte do todo. O problema da identidade aqui é vivermos na ilusão das aparências, em vez de exercitarmos a recordação do que já somos. Os budistas, esses danados, vão ainda mais longe. Dizem que nem sequer há um eu permanente. Anatta, chamam-lhe. O que somos é só um fluxo de fenómenos: sensações, perceções, pensamentos. Não há uma essência que persista. Somos como uma chama: existimos enquanto a lenha arde. Depois… sopro no vento.”
Fez a longa exposição, ao ritmo de uma oração, com os olhos fixos na fachada da capela. Fiquei a olhar para ele, a tentar perceber onde queria chegar.
«Talvez sejamos tudo isso ao mesmo tempo. Uma alma perdida, um campo de batalha invisível, um deus esquecido, um fio de fumaça.» Virou-se para me olhar nos olhos. «Se me perguntas o que acho disto, são narrativas para lidar com o trauma da mortalidade. Somos uma mão cheia de areia a tentar contar histórias a si própria para não se dissipar no vento. O problema é que algumas destas narrativas são usadas para controlar e subjugar e já mataram milhões e milhões de seres humanos. E continuam a matar.»
Fez um sinal para prosseguirmos a marcha. «Anda. Não creio que encontrarás ali grande resposta para o teu problema de identidade. Graças a Deus.»
Seguimos pela Rua dos Almocreves, passámos junto à livraria Uni Verso, do incansável João Raposo Nunes, e virámos para a Praça de Bocage. Um grupo de velhotes sentados num dos bancos junto à câmara municipal, todos de bonés descaídos sobre os olhos, saudou-nos com um ligeiro aceno e depois prosseguiu indiferente a sua silenciosa meditação.
«Os românticos», retomou o Silva, a apontar para a estátua do poeta, «tentaram recuperar o sentido de unidade que tinha sido desfeito com o início do Iluminismo e a Revolução Industrial. Usando a imaginação e da experiência interior, em vez da razão, lutaram contra a corrupção do bom selvagem humano, caracterizando a natureza como reflexo da alma do artista criador, um génio solitário que procura exprimir o seu mundo interior transcendente. As lutas sociais e o desenvolvimento de uma consciência política levaram ao eu do realismo, constrangido por foças externas. A identidade torna-se um produto do ambiente, das circunstâncias, de heranças. Só que, depois da Grande Guerra, numa terra desolada e estéril, o eu fragmenta-se no cubismo da pintura, no fluxo de consciência dos escritores modernistas, à procura de sentido e coerência, frequentemente construindo a identidade através da recoleção de memórias. Os pós-modernistas deram um passo mais longe. Sem uma identidade original, o self tornou-se num construto sociolinguístico, intertextual, metaficcional, um eco de outros textos ou uma reprodução serigráfica em massa de rostos. E no presente, minha querida, deixámos de ver as linhas que marcavam a separação entre um e outro fragmento ou reprodução. As dimensões do self são fluídas, múltiplas identidades – de género, raça, cultura – e entrecruzam-se com total liberdade, sem se ver qualquer marca que as separe umas das outras. Os géneros artísticos combinam-se em diferentes plataformas, com foco mais no processo do que no produto artístico, e o autor, que tinha sido destronado pelo leitor dos pós-modernistas, passou a ser uma estatística, um padrão que pode ser apropriado por uma máquina suficientemente inteligente.»
Pousou as duas mãos sobre a bengala, encarando-me como um guia turístico que tenta confirmar se a comitiva que o segue compreendeu o foi transmitido.
«O que vale, a ti e a mim, é que possuímos a liberdade de viajar neste contínuo artístico. Mesmo sendo importante estar a par das modas, não temos de ser súbditos do imperador das tendências ou do profeta do instante, nem daquela espécie de aparente geração espontânea, “Sua excelência, o efémero Influenciador”. Nunca foi tão importante ler os clássicos».
A nossa rota peripatética prosseguiu até à Fonte das Musas, um grupo de mulheres dispostas em círculo num duche público a exibirem a sua nudez. Fiquei curiosa à espera do comentário do Silva.
«Já no século passado, os precursores da moderna psicologia referiam a existência de diferentes Eus. Por exemplo, a distinção entre o “eu sujeito” e o “eu objeto” ou a troika Id, Ego e Superego, que procura explicar os conflitos entre instintos do subconsciente e as regras internalizadas da sociedade. Mais tarde, depois de uma fase em que o self era visto apenas como uma “ilusão”, nada mais do que um repertório de comportamentos condicionados ao longo do tempo, foram exploradas novas perspetivas do eu: como construção psicossocial, como congruência entre o eu atual e eu ideal, como um eu performativo representado em eventos sociais ou mesmo como resultado de processos narrativos que procuram integrar memória, cultura e imaginação. Mas a Psicologia retrata aquilo que as Arte e a Literatura induzem, ou vice-versa, e também nesta área disciplinar as últimas correntes de pensamento veem o self como fragmentado e relacional, moldado por relações discursivas e de poder. Mais recentemente, os avanços da neurociência e da ciência cognitiva superaram definitivamente o cisma cartesiano e reuniram mente e corpo, curiosamente numa troika com paralelos à que foi intuída na Psicanálise: um proto-self, que faz a regulação biológica automática, um core self, que é responsável pela consciência momento a momento, e um autobiographical self, correspondente à memória narrativa e à autorreflexão.»
Numa coreografia própria da abertura dos Jogos Olímpicos, ao som da última sílaba os repuxos lançaram jorros de água sobre as sólidas ancas e os seios rochosos das estátuas desnudadas. O Silva fez sinal para seguirmos no sentido nascente, ao mesmo tempo que encerrava aquela etapa da preleção.
«Também aqui precisamos de nos precaver contra despotismos. Inúmeros casos de imposição de determinadas noções de self na vida humana tiveram consequências negativas. Veja-se o trágico caso de David Reimer, vítima da teoria de John Money de que a identidade sexual é completamente um construto social. De todo o modo, as abordagens verdadeiramente científicas do self, tanto em Psicologia como noutras áreas, são imprescindíveis para nos compreendermos melhor.»
Caminhámos ao longo da placa central da avenida Luísa Todi, cruzando com frequência conhecidos que nos foram cumprimentando com preguiçosos acenos, sentados a saborear o lazer e entretidos a alimentar os pombos. Lembrei-me de dias de infância em que, sob o olhar atento do Silva, aprendia a arte do veloz equilíbrio numa pequena bicicleta. Passámos o coreto e a parte do jardim defronte do hotel “Esperança” até chegarmos defronte do Fórum Luísa Todi, onde o Silva fez sinal para nos sentarmos num banco.
«Desde o tempo da Grécia Antiga, muito mais pensadores problematizaram estas questões. Os mais recentes defendem que a identidade passou a ser determinada pela consciência da mortalidade e pelas nossas escolhas, a mesma ideia que o teu amigo francês te comunicou», apontou, piscando-me o olho.

Título vai aqui
Your content goes here. Edit or remove this text inline or in the module Content settings. You can also style every aspect of this content in the module Design settings and even apply custom CSS to this text in the module Advanced settings.

Título vai aqui
Your content goes here. Edit or remove this text inline or in the module Content settings. You can also style every aspect of this content in the module Design settings and even apply custom CSS to this text in the module Advanced settings.

Título vai aqui
Your content goes here. Edit or remove this text inline or in the module Content settings. You can also style every aspect of this content in the module Design settings and even apply custom CSS to this text in the module Advanced settings.