Prólogo 2. Contingências na esplanada

Apr 1, 2025

Desculpa a interrupção, recebi uma chamada da minha chefe. Quer falar comigo, provavelmente para me despedir. É que ontem, depois de ela me mandar a mensagem, acabei mesmo por não lhe enviar o trabalho. Eu explico, deixa-me tentar retomar o fio à meada.

Depois de ter apanhado com a multa, fiquei ali, especada defronte da biblioteca, a pensar no que se tinha passado. Aquela história dos pedidos de desculpa estava a incomodar-me, uma espécie de comichãozinha na cabeça. Que trio de personagens intolerantes eram aqueles para ficarem tão enxofrados? Além disso, tinh a Ms Lortz lá dentro, à espera de me dar uma coça… Não conseguia pensar se havia de entrar na biblioteca ou regressar a casa para terminar o relatório se molengava há semanas como uma preguiça no calorzinho do monitor do meu computador. 

«Que se lixe! Se enviar o trabalho antes ou depois da meia-noite, não faz diferença.» Decidi sentar-me preguiçosamente na esplanada que fica mesmo ao lado da biblioteca e deixar todas as energias negativas deslizarem corpo abaixo para os interstícios da calçada.

A esplanada, não sei se te lembras, é um daqueles cafés que, sendo modestos no interior, vivem do generoso espaço ao ar livre onde gente ociosa, sobretudo turistas e quadros técnicos reformados, se entrega ao labor social de beber e conversar, esse duplo prazer que substitui tão bem o ato de “scrollar” no telemóvel. Atrás da pequena multidão, ergue-se, numa nota decididamente carnavalesca, a entrada do café: uma monstruosa cabeça de um coelho branco, com orelhas que parecem querer alcançar o segundo andar, e uma boca aberta em riso fixo, servindo de entrada. Do interior surgem, com a compostura de quem já trocou a dignidade pela gorjeta e se resignou ao ridículo, empregados de mesa vestidos a rigor, mas adornados com um par de orelhas postiças e um volumoso rabicho branco que lhes sacode as calças a cada passo.

Foi a nova proprietária do espaço, uma cuniculómana chamada Nerfeh, que remodelou a entrada há uns dois meses e deu vazão ao seu fetiche de ter homens vestidos de coelhinhos. Numa das raras ocasiões em que apareceu para controlar a gestão do espaço pelo marido, a voz dela espalhou-se pelas mesas, a calar as conversas de toda a gente, a gritar-lhe «Só pedia a Deus que fosses um coelho!». Ninguém sabia se ela o pretendia assar ou se tinha tido outras expetativas quando o conheceu…

Fisguei uma mesa desocupada junto à entrada e estava a preparar-me para me sentar, quando ouvi uma voz a chamar-me.

«Mademoiselle! Eh, Mademoiselle!»

Em vez de um turista à procura de direções, vi um homem a acenar-me sentado noutra mesa, acompanhado de uma mulher com um longo turbante que a fazia parecer ainda mais alta do que ele. Aproximei-me para perceber o que queriam.

«Deixou cair o seu livro ali.»

Pousei as minhas coisas na cadeira defronte deles, corri para apanhar um fino volume que tinha caído do meu saco e regressei à mesa do casal para lhes agradecer.

«O que anda a ler, Mademoiselle? Deixe-me saber se preveni uma tragédia ou se cometi uma desgraça ainda maior.»

O sorriso encolhido entre os ombros fez-me lembrar o sapo Cocas, com óculos de lentes grossas e um olho estrábico. O homem, de cabelo liso e grisalho, estava de fato completo cinzento, não muito escuro, animado apenas por uma gravata de um vermelho fatigado, como quem cede a um capricho juvenil já fora de moda. A mulher, com uma testa alta a descer a direito para as sobrancelhas alongadas em arco sobre o canto dos olhos de azul-pálido, tinha uma silhueta elegante acentuada pelo alto turbante e um vestido âmbar de um algodão suave ao olhar que insinuava mais do que mostrava. Ambos, com o displicente abandono dos que se sabem observados, seguravam copos de vinho, fumando devagar, soprando pequenas nuvens que, como pensamentos vagos, se desfaziam sob a luz. Aparentavam terem passado a meia-idade, mas talvez parecessem mais velhos por causa dos semblantes sérios sobre os quais se sobrepunham os seus francos sorrisos, como se fossem desenhos laminadosos.

«O Estrangeiro de Albert Camus», respondi, num tom vacilante entre seriedade e leveza.

«Apropriado para estes tempos de intolerância. O meu amigo Albert ficará contente por saber que o livro dele ainda é lido.»

«Conhece o autor?», reagi. A pergunta escapou-me com um forte tom de incredulidade.

«Conheço, sim. Naturalmente.»

Olhei para a mulher, à espera de que ela o corrigisse, mas a sua indiferença convenceu-me de que ambos deviam estar numa fase de interlíngua que os levava a comunicar coisas diferentes em português e francês.

O homem virou-se ligeiramente para a companheira, fez um gesto na minha direção e ela aquiesceu com a cabeça.

«Porque é que não se senta connosco? Estamos sozinhos, um pouco entediados, e uma companhia seria bem-vinda.», convidou o homem.

A mulher de turbante, que até aí se mantivera circunspecta, a medir-me com os olhos, sorriu e fez um ligeiro aceno em direção à cadeira vazia.

«É a nossa convidada.», disse, num tom de voz ligeiramente rouco.

O homem girou a garrafa que tinham à mesa a mostrar o rótulo.

«Se quiser, prove um belo vinho da sua região.», sugeriu, erguendo o copo com a mão num sinal ao empregado de mesa. «E por sinal, até ostenta o meu nome. Apaixonei-me por este J.P. mesmo antes de o provar.»

«Como sempre, mon chéri. Não é a primeira vez que sustentas uma paixão sem nunca chegares a prová-la!»

Riu-se como quem clareia a garganta do catarro deixado pelo tabaco. Os dois estavam de cigarros acesos e tinham acumulado inúmeras beatas crucificadas violentamente contra o cinzeiro. Num gesto de cordialidade, acedi ao convite. Sentada na terceira cadeira, à distância de um braço do homem, podia sentir o cheiro suave de dois perfumes, um mais denso e largo com traços de especiarias e outro mais fresco e poroso, ambos misturados com o cheiro a tabaco fumado. Recusei delicadamente o copo de vinho e pedi um cappuccino e um pastel de nata ao empregado de mesa. A seguir, a intensa curiosidade que intuía do outro lado da mesa materializou-se.

«Espero que me não leve a mal intrometer-me, mas fiquei curioso com a leitura do livro que traz consigo. Deixe-me perguntar-lhe uma coisa, Mademoiselle: está à procura de sentido ou sente apenas falta de emoções na vida? Ou talvez ambas? Isso seria uma calamité

A mulher de turbante deu-lhe uma cotovelada e sorriu-me. Os dois ficaram a mirar-me, insistentes numa resposta.

«Receio que seja um pouco das duas.», hesitei. «Mas não quero estar a importuná-los com a minha vida.»

«Ah, ma chéri, não nos incomoda de tous. A nossa existência tem sido povoada de momentos semelhantes a este, em que guiamos jovens como a mademoiselle

O tom de charme ganhou um contorno mais metálico, como se fora um introito a cativar a minha atenção para uma pequena palestra.

«Sinto que ando à procura de mim própria, a tentar descobrir qual é a minha essência.»

«O sentido das nossas vidas não se deve basear na presunção de uma essência. Os homens e as mulheres não podem ser compreendidos apenas em termos das categorias da biologia ou da psicologia, nem através de uma moral sobre a condição humana. Antes da essência vem a existência, definida pela nossa atitude face à nossa dimensão factual, ou seja, pela essência dessa atitude.»

«Bom, isso parece aquela história sobre quem apareceu primeiro, se foi o ovo ou a galinha…»

«Non, ma chéri, não se trata aqui de uma questão de causalidade. É algo mais simples do que isso. Causalidade é uma forma de determinismo – seja real ou construído nas nossas mentes –, mas aquilo que lhe proponho é transcender a sua factualidade, ir além daquilo que simplesmente você é em direção daquilo que pode ser: o factual emerge a partir daquilo que é possível; e o possível não é o resultado do determinismo ou da possibilidade lógica, mas sim o resultado das nossas escolhas e das nossas decisões.»

«Não somos o que dizemos, mas somos o que fazemos?»

«Aah… Oui, algo assim. Se pensar na sua identidade, ela pode ser descoberta se compreendermos os seus padrões de comportamento. Reconstruindo o mundo significante que o seu comportamento revela, é possível destapar o seu “projeto fundamental” que dá uma forma distinta à sua vida.»

E dizendo isso, destapou um pouco a gola da minha camisa com um gesto gentil, como quem compõe uma peça de vestuário. Puxei a gola para a posição inicial. Olhei para a mulher de turbante, à procura de uma reação, e ela sorriu-me de volta.

«Descobrir qual é o meu papel no mundo, é isso?»

«Non, non, non. Não se trata de desempenhar o nosso papel no mundo, mas sim de sermos autênticos. Se eu fizer uma coisa porque é a minha obrigação, faço-o porque é o meu dever, talvez por um imperativo moral. Contudo, a minha ação não é autêntica se eu o fizer apenas por dever ou porque é o que as pessoas esperam que eu faça nessa situação. A ação só é autêntica quando eu escolho agir dessa forma, independentemente das sanções sociais, e me comprometo com essa escolha.»

«Como quem age por medo do castigo de Deus em vez de agir por verdadeira fé?»

«Deixemos a religião de parte, pensemos num exemplo mais interessante.»

Fez uma pausa e desceu o olhar para o meu peito. Olhei novamente para a mulher de turbante a ver se reagia e vi que também ela olhava para o meu peito.

«Imaginemos que a mademoiselle era confrontada, de certo modo, com o exercício da sua corporalidade.»

O olhar de surpresa que dirigi à mulher de turbante fê-la intervir.

«Não vais usar a nossa convidada como exemplo…»

«Ah, oui, bien…»

Olhou em volta.

«Trés bien.» Olhou em volta. «Vejamos esse empregado de mesa. Tem gestos vivos e marcados, um tanto precisos demais, um pouco rápidos demais, e inclina-se com uma cortesia algo excessiva. A sua voz e os seus olhos exprimem um interesse talvez demasiado solícito pelo pedido do freguês. Depois, gira sobre si próprio, a tentar imitar o rigor inflexível de sabe-se lá que autómato, a segurar a bandeja com uma espécie de temeridade de um funâmbulo, num equilíbrio sempre instável e interrompido, que ele restabelece continuamente com um ligeiro movimento do braço e da mão. Toda a sua conduta parece uma brincadeira. Mas brinca ao quê? Não é preciso ser muito inteligente para descobrir: está a brincar aos empregados de mesa.»

«Como uma criança a imitar o que vê dos adultos?»

«Aah… Oui, algo comme ça. A questão é: tenho a capacidade de me fazer a mim próprio ou sou apenas aquilo que sou em função dos papéis que estou a desempenhar? Alors, a autenticidade define a condição de me realizar a mim próprio. Ser autêntico é, assim, ser autónomo e não um autómato. Escolher resolutamente – engagé – um certo curso de ação, uma certa forma de ser no mundo.»

Puxou de um cigarro, acendeu um outro para a mulher e prosseguiu com uma baforada de fumo.

«Reconhecer isto provoca uma grande ansiedade, porque nos sentimos étrangers, como o personagem do seu livro, e vemos o absurdo no mundo, a sua falsidade.»

Os dois davam bafuradas a observar-me, como se esperassem uma resposta da minha parte. Senti que estava num exame de filosofia, à procura de algo para dizer.

«Mas a personagem do livro não parece ser livre, vive presa numa angústia…»

«Oui, há uma angústia nessa desconexão que nos leva a sentir não termos um lugar ao qual possamos chamar casa. Desapossados dessa capacidade para nos situarmos, não conseguimos nomear as coisas e o sentido dado anteriormente aos objetos através de nomes e categorias começa a tornar-se absurdo.»

«No sentido de ilógico ou de disparatado?»

«Aucun des deux

Olhou novamente em volta, como se à procura de uma ferramenta improvisada.

«Repare na raiz daquela árvore. Num mundo ordenado, eu chamo-lhe raiz e descrevo características que vejo. Se eu me desfocar da sua essência e vir naquilo a coisa que aquilo é, deixo de usar nomes que, na verdade, nada dizem sobre o que é que aquilo é. O essencial passa a ser a contingência. O existente simplesmente é. E no exercício extremo de abandono de qualquer ato de nomear e de ordenar a essência, esta deixa de preceder a existência. A existência simplesmente é. O existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por um encontro imprevisto. Isto é simultaneamente libertador e angustiante, uma desfamiliarização do mundo que fulmina o nosso âmago, provocando mais do que um desconforto, mais do que um enjoo, uma profunda náusea da consciência absurda da existência.»

E dizendo isto, soltou um sonoro peido que pareceu pôr a direito o olho estrábico por breves instantes, fazendo-o soltar umas sonoras gargalhas que atraíram a atenção dos que estavam por perto.

«Ça alors!», exclamou a mulher, rindo alto também.

«Náusea sem dúvida», pensei, a tentar conter a respiração. Que dieta de queijos faz parte das refeições deste homem?!

E mudando outra vez para um suave tom de charme, pousou a mão sobre a minha perna.

«Ah, mademoiselle, perdoe as minhas bêtises. Levei demasiado longe a minha ilustração da contingência da existência. A angústia que sente é um bom sinal, está no caminho da consciência da sua liberdade, que é algo que não agrada à maior parte das pessoas. Nós procuramos estabilidade e usamos a linguagem da liberdade para atos comezinhos, como a liberdade de soltar um traque no meio de uma esplanada.»

Riram-se os dois novamente.

«Acredite quando lhe digo que estamos condenados a ser livres, numa luta permanente entre liberdade e contingência.  Mas muito mais há para dizer sobre essa liberdade, ma chéri, porque, como disse, não estamos sós no mundo e temos de viver uns com os outros. Às vezes por infelicidade, outras alturas para nossa alegria. Por isso, deixe-me fazer um convite: venha connosco conhecer alguns dos nossos amigos expatriados neste seu magnífico país. Há um pequeno bar na rua aqui ao lado, “La Bohème”. Pode provar deliciosos cocktails e deleitar-se com um jazz aprazível. Hoje até vai poder ouvir música ao vivo!… E prometo que não solto mais contingências.»

Os navegantes do deserto

Os lugares da diferença e do outro podem ser a fonte dos nossos medos, até permitirmos que deixem de ser estrangeiros para nós. A música é um desses caminhos, como aquela trazida do deserto tuaregue pelo coletivo Tinariwen, precursores do “desert blues”.

O casal francês

O casal francês é Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, um dos mais importantes pares do século XX. Os dois mantiveram uma parceria intelectual e amorosa por mais de 50 anos, desafiando convenções sociais e colaborando na difusão do existencialismo.

Boémia e Rapsódia

Inspirada n’O Estrangeiro de Albert Camus, bem como noutras fontes literárias, musicais e culturais, “Bohemian Rapsody” é um dos temas incontornáveis da música recente.

Esplanada junto à biblioteca

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.