Uma conversa peripatética

Apr 1, 2025

Cheguei agora a casa depois do encontro com o Silva. Ele estava à minha espera na Adega dos Frades, sentado na mesa habitual, junto à parede de azulejos gastos, com a bengala encostada ao tampo da mesa de madeira. Não te acontece sentires que estás a regressar de um sonho quando vais a um sítio familiar cheio de memórias acumuladas como o pó das frestas que escapam ao pano da limpeza? É esse estranhamento que sinto cada vez que vou à Adega. Naturalmente, o facto de ser no andar térreo do edifício da pensão é motivo suficiente para me perturbar.

A Adega continua a ser um espaço onde o tempo passa lentamente, demorando-se em cada mesa a tomar um trago, noutra mesa a discutir as notícias, a atrasar-se numa partida de sueca e a adiar a saída para mais um copo e uma história. As paredes são guardiãs de memórias fotográficas – clientes de outras eras alinhados em poses de brinde, a vizinhança em festiva procissão nas marchas dos Santos Populares, uns quantos galhardetes e as respetivas equipas de futebol amador – e ao balcão, o Manel dos Frades, o mesmo riso fácil – mas a barriga mais farta do que ontem… – a servir bebidas e comida com uma perícia ensaiada pelo hábito. Por cima, o letreiro de sempre, que ele insistia em não corrigir: “As bebidas expostas são para consumo da casa”. De nada servia eu dizer-lhe que, com aquela preposição, dificilmente as bebidas lhe dariam lucro… Como se costuma dizer, voltei ao local do crime — não apenas um lugar físico, mas um pedaço da minha própria história, impregnado de recordações.

«Queres alguma coisa para comer? Pedi uma bifana e um traçadinho para mim.», disse-me o Silva, ao sentar-me.

«Não, obrigado.» Parei à procura da justificação mais cordial. «Estou a cortar com a carne.»

Ele fez um leve sorriso. «Eu compreendo. Fazes bem. Provavelmente, não é tarde para eu fazer o mesmo, mas não tenho vontade de lutar contra velhos hábitos nesta fase da minha vida.»

Eu própria tinha tido essa dificuldade. Ao sentir o cheiro das bifanas no ar, prazeres passados estimularam o meu apetite. Contudo, apesar de não tentar suprimir nem renegar essas memórias, conseguia agora distinguir nesse aroma os traços viscosos de ingredientes prejudiciais para a saúde humana e para o próprio bem-estar do planeta e, mais angustiante, o sofrimento desnecessário de animais. Comer deixou de ser um simples instinto, tornou-se um ato político.

«Aqui está a bifana e o traçadinho, Silva.» Era o Manel dos Frades. Pousou o prato e o copo na mesa e virou-se para mim. «Bem me parecia que eras tu, estava a reconhecer-te pelas costas. Como é que estás?». Esperava que ele dissesse algo sobre a noite anterior, mas foi como se o nosso encontro não tivesse acontecido. Mirou-me por uns instantes com o sorriso embaraçado de sempre – na nossa infância, o Manel insistia em “conquistar” a minha atenção – e respondi com um encolher de ombros. «O que é que vai ser para ti? Queres que faça uma sandes de tofu à maneira dos frades?» Desde que integrara pratos veganos no menu, estava sempre a brincar com o anacronismo culinário.

«Pode ser, mas sem traçadinho a acompanhar, apenas uma água com gás.»

«Ah, ah, estou a ver pela tua cara que tiveste uma noite animada.»

Observei-o com intensidade, a ver se revelava algo.

«Ok, ok, não precisas de olhar assim, ninguém está aqui para julgar.», amenizou, com um riso nervoso, regressando ao balcão para preparar o meu prato.

«E então, responde lá à pergunta, como é que tens estado?», inquiriu o Silva.

Num instinto defensivo, comecei a explicar como tenho andado cansada e a lamentar o quão perdida me tenho sentido nos últimos meses, sem rumo, mais encalhada do que à deriva.

«Jesus, até parece o refrão de um faduncho dos pescadores! Se vais estar a usar metáforas náuticas, tens de saber que podes estar encalhada por causa da maré. Quando mudar a maré, desencalhas, filha.»

«Não é assim tão fácil. E, se calhar, mesmo com a mudança da maré, encalho num cabeço logo a seguir.»

«Pois, são os escolhos. Ainda estamos a falar metaforicamente, não estamos?»

«Não sei. Sinto um vazio de sentido, é tudo. E quando olho ao espelho, não me reconheço. Nada daquilo que faço me parece real, é como se tivesse perdido o contacto com a minha verdadeira identidade.»

«Andas a ler muita palha na internet. Não tarda muito, estás a papaguear que cada um deve descobrir o seu verdadeiro eu e a maneira única e pessoal de o expressar. No meu tempo, os livros de autoajuda tinham o objetivo de nos transformarem em algo diferente de nós próprios, como “ser mais sociável” ou “pensar positivamente”. Agora, os autodenominados “life coaches” vendem a ilusão de que dentro de nós repousa uma essência esquecida, ou ocultada pela malévola sociedade, e que, quando a redescobrirmos, seremos mais autênticos.»

Senti movimento atrás de mim. O Manel regressou com o meu prato. Interrompemos a conversa e atacámos a comida.

«Ah, isto é que é felicidade, ahn?», exalou o Silva com uma dentada.

Sentados frente a frente, inclinados sobre os pratos de esmalte lascado, parecíamos conspiradores silenciosos a partilhar um segredo. O Silva, com a solenidade de um sacerdote, mordeu com uma lentidão quase cerimoniosa.

«É a placa, torna tudo mais difícil», explicou com um breve riso.

Depois de saciados, passámos aos eventos da última noite. Contei ao Silva o mesmo que a ti, talvez com detalhes mais gesticulados e, em alguns momentos, com as emoções um pouco à flor da pele. Ele escutou-me pacientemente, interrompendo-me apenas para confirmar um ou outro detalhe.

«E foi ali que fizeste a tatuagem?», perguntou-me, apontando para uma montra, no outro lado da travessa, com cortinas brancas esgaçadas e sujas e um letreiro vermelho colado na vitrine, de letras grossas e pretensamente joviais a anunciar “Trespassa-se”.

Acenei-lhe com a cabeça, sem ousar abrir a boca, temendo que qualquer palavra provocasse um novo e inquietante fenómeno.

Fitou-me a medir-me a expressão, o olho são com a húmida tranquilidade da velhice, o olho cego azulado virado para dentro em permanente introspeção. Sabes como ele é, com aquelas pausas demoradas, como se estivesse a escavar sentidos nas palavras mais banais. Depois sorriu e disse:

«Acho que sei o que se está a passar contigo. O melhor é conversarmos enquanto andamos, à maneira do mestre Sócrates.», decidiu.

Era sinal de que a conversa ia ser longa. Caminhámos pela baixa de Setúbal, com o Silva a expor-me diferentes perspetivas sobre as noções de identidade e do eu. Noutra altura, conto-te os detalhes. Terminámos o passeio peripatético defronte do cineteatro Luísa Todi, sentados num banco de jardim, o Silva a segurar a bengala entre as mãos.

 «A analogia do Eu como uma narrativa é, na minha opinião, a mais satisfatória das diferentes definições, transversal a tantas áreas do pensamento. Construímos sentidos através de narrativas, explicando o mundo com recurso a histórias, e o mesmo processo é usado para criarmos identidades. Estou a referir-me à dimensão pessoal da narrativa individual que cada um faz da sua vida, em que somos simultaneamente narradores e matéria narrada, dando à nossa existência coesão e coerência. Nós somos criaturas no espaço e no tempo e o presente é vivenciado não como o verdadeiro tempo, mas como o contexto da ação onde se interseccionam o passado e o futuro. E essa ação, minha filha, quando olhas para o palco da vida, como o desse teatro aí em frente, essa ação tem lugar num cenário cultural e entrecruza-se com as narrativas de outros atores. O nosso Eu não está escondido dentro de nós à espera de ser resgatado, está na história que contamos do nosso passado e naquilo que tentamos fazer com o nosso futuro.»

Observou-me a a ver se eu dizia alguma coisa. Confesso que estava aturdida com a reflexão, mas indiquei ter percebido a metáfora.

«É mais do que isso. Suspeito que, sem te teres apercebido, a tua crise de identidade agravou-se ao ponto de criar um deslocamento do teu plano narrativo. Nada demais, uma inclinação mínima, mas suficiente para começares a cruzar-te com planos narrativos de diferentes perpendicularidades. Ao contrário do que é comum pensar-se, as narrativas não são lineares. Assemelham-se mais a justaposições de sequências geométricas com variadas configurações, das circulares às icosaédricas. Explicando com maior detalhe, cada configuração geométrica corresponde a uma dada configuração da narrativa pessoal de um indivíduo, que se justapõe a outra configuração e outra configuração, numa alternância parecida com a das luzes estroboscópicas. As configurações são permanentes, isto é, todas as diferentes configurações da narrativa pessoal estão lá, mas subjacentes àquela que está a receber a luz. A melhor metáfora que conheço, e mais deliciosa, é a do bolo mil folhas. Cada folha é uma perpendicularidade, correlacionada com um flash do strober e com uma configuração da narrativa pessoal. Esta configuração pode ocorrer em qualquer ponto da perpendicularidade, isto é, do plano narrativo, que passa então a ser o ponto onde ocorreu a anterior configuração e todas as outras antes dessa. Esta impermanência da posição de todas as configurações da narrativa pessoal é a razão pela qual o teu regresso ao passado arrastou consigo todas as configurações que aconteceram depois, porque elas foram modificadas pelas que aconteceram a seguir. Deslocam-se como se fosse um harmónio. Ora, se o teu plano narrativo tiver uma mudança na perpendicularidade, as tuas configurações começam a deslocar-se de modo diferente, podendo cruzar-se com perpendiculares e com configurações de outros espaços temporais. Como as perpendiculares são virtualmente infinitas, ligeiras alterações no ângulo podem fazer com que os seus extremos estejam significativamente mais afastados da perpendicular regular, pelo que as configurações que ocorrem em pontos extremos ocorrem também noutras perpendiculares.”

Suponho que a minha cara traduziu a imensa confusão que tudo aquilo se provocava. E se consigo agora comunicar-te o que o Silva explicou é porque lhe pedi para repetir tudo ao mesmo tempo que convertia tudo em texto no smartphone.

 As mãos do Silva pousaram sobre as minhas, o frio dos ossos a perpassar pela sua fina pele. Soltou uma leve gargalhada que lhe chocalhou o frágil corpo. Depois, fixou-me, um olho húmido de compaixão, trocista o outro azul de cegueira. «Não procures ajuizar tudo isto, é demasiada física quântica misturada com a incerteza narrativa.»

Riu-se ainda mais e depois disse num tom mais sério.

«Mesmo no momento da nossa morte, prematura ou esperada, nada garantirá que as nossas vidas façam sentido. Nós somos atores, espíritos que se dissipam em ar imaterial, dizia o bardo. E como a insubstancialidade deste banco, daquelas árvores, do próprio céu que nos cobre, tudo se dissolverá sem deixar rasto. Somos da mesma matéria dos sonhos e as nossas vidas desvelam-se num sono».

Fiquei a olhar para ele com um olhar perdido.

«Aquilo de que precisas é narrar a tua história. E eu tenho uma ideia que poderá ajudar-te a fazer isso. Deixa-me falar com uma pessoa. Tentarei dar novidades esta semana, não te preocupes. Por agora, chega de conversas de velho. Vá, vai à tua vida. Ah, e atenção, evita o contacto com estranhos nos próximos dias, está bem?»

Levantei-me e logo uma voz clamou a atenção do Silva.

«Idalécio!»

Deixei-o com os seus amigos que se lhe juntavam e acelerei o passo de regresso a casa. Não sei qual é o plano dele, mas ele tem razão: tenho de me narrar e ser algo mais do que apenas uma personagem na história de outras pessoas.  

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