Voltei agora a casa depois do encontro com o Silva. Ele estava à minha espera na Adega dos Frades, sentado na mesa habitual, junto à parede de azulejos gastos, com a bengala encostada ao tampo da mesa de madeira. Não te acontece sentires que estás a regressar à verdadeira realidade vinda de um sonho no futuro quando chegas a um sítio familiar cheio de memórias acumuladas como pó nas estantes que escapam ao pano da limpeza? É esse estranhamento que sinto cada vez que vou à Adega. Naturalmente, o facto de ser no andar térreo do edifício da pensão é motivo suficiente para me perturbar.
A Adega continua a ser um espaço onde o tempo passa lentamente, demorando-se em cada mesa a tomar um trago, noutra mesa a discutir as notícias, a atrasar-se numa partida de sueca e a adiar a saída para mais um copo e uma história. As paredes são guardiãs de memórias fotográficas – clientes de outras eras alinhados em poses de brinde, a vizinhança em festiva procissão nas marchas dos Santos Populares, uns quantos galhardetes e as respetivas equipas de futebol amador – e ao balcão, o Manel dos Frades, o mesmo riso fácil – mas a barriga mais farta do que ontem… – a servir bebidas e comida com uma perícia ensaiada pelo hábito. Por cima, o letreiro de sempre, que ele insistia em não corrigir: “As bebidas expostas são para consumo da casa”. De nada servia eu dizer-lhe que, com aquela preposição, dificilmente as bebidas servidas ao copo lhe dariam lucro… Como se costuma dizer, voltei ao local do crime — não apenas um lugar físico, mas um pedaço da minha própria história, impregnado de recordações.
«Queres alguma coisa para comer? Pedi uma bifana e um traçadinho para mim.», disse-me o Silva.
«Não, obrigado.» Parei à procura da justificação mais cordial. «Estou a cortar com a carne.»
Ele fez um leve sorriso. «Eu compreendo. Fazes bem. Provavelmente, não é tarde para eu fazer o mesmo, mas não tenho vontade de lutar contra velhos hábitos nesta fase da minha vida.»
Eu própria tinha tido essa dificuldade. Ao sentir o cheiro das bifanas no ar, prazeres passados estimularam o meu apetite. Contudo, apesar de não tentar suprimir nem renegar essas memórias, conseguia agora distinguir nesse aroma os traços viscosos de ingredientes prejudiciais para a saúde humana e para o próprio bem-estar do planeta e, mais angustiante, o sofrimento desnecessário de animais. Comer deixou de ser um simples instinto, tornou-se um ato político.
«Aqui está a bifana e o traçadinho, Silva.» Era o Manel dos Frades. Pousou o prato e o copo na mesa e virou-se para mim. «Bem me parecia que eras tu, estava a reconhecer-te pelas costas. Como é que estás?». Esperava que ele dissesse algo sobre a noite anterior, mas foi como se o nosso encontro não tivesse acontecido. Mirou-me por uns instantes com o sorriso embaraçado de sempre – na nossa infância, o Manel insistia em “conquistar” a minha atenção – e respondi com um encolher de ombros. «O que é que vai ser para ti? Queres que faça uma sandes de tofu à maneira dos frades?» Desde que integrara pratos veganos no menu, estava sempre a brincar com o anacronismo culinário.
«Pode ser, mas sem traçadinho a acompanhar, apenas uma água com gás-»
«Ah, ah, estou a ver pela tua cara que tiveste uma noite animada.»
Observei-o com intensidade, a ver se revelava algo.
«Ok, ok, não precisas de olhar assim, ninguém está aqui para julgar.», amenizou, com um riso nervoso, regressando ao balcão para preparar o meu prato.
«E então, responde lá à pergunta, como é que tens estado?», inquiriu o Silva.
Num instinto defensivo, comecei a explicar como tenho andado cansada e a lamentar o quão perdida me tenho sentido nos últimos meses, sem rumo, mais encalhada do que à deriva.
«Jesus, até parece o refrão de um faduncho dos pescadores! Se vais estar a usar metáforas náuticas, tens de saber que podes estar encalhada por causa da maré. Quando mudar a maré, desencalhas, filha.»
«Não é assim tão fácil. E, se calhar, mesmo com a mudança da maré, encalho num cabeço logo a seguir.»
«Pois, são os escolhos. Ainda estamos a falar metaforicamente, não estamos?»
«Não sei. Sinto um vazio de sentido, é tudo. E quando olho ao espelho, não me reconheço. Nada daquilo que faço me parece real, é como se tivesse perdido o contacto com a minha verdadeira identidade.»
«Andas a ler muita palha na internet. Não tarda muito, estás a papaguear que cada um deve descobrir o seu verdadeiro eu e a maneira única e pessoal de o expressar. No meu tempo, os livros de autoajuda tinham o objetivo de nos transformarem em algo diferente de nós próprios, como “ser mais sociável” ou “pensar positivamente”. Agora, os autodenominados “life coaches” vendem a ilusão de que dentro de nós repousa uma essência esquecida, ou ocultada pela malévola sociedade, e que, quando a redescobrirmos, seremos mais autênticos.»
Senti movimento atrás de mim. O Manel regressou com o meu prato. Interrompemos a conversa e atacámos a comida.
«Ah, isto é que é felicidade, não é?», exalou o Silva com uma dentada.
Sentados frente a frente, inclinados sobre os pratos de esmalte lascado, parecíamos conspiradores silenciosos a partilhar um segredo. O Silva, com a solenidade de um sacerdote, mordia com uma lentidão quase cerimoniosa.
«É a placa, torna tudo mais difícil», explicou com um breve riso.
Depois de saciados, passámos aos eventos da última noite. Contei ao Silva o mesmo que a ti, talvez com detalhes mais gesticulados e, em alguns momentos, com as emoções um pouco à flor da pele. Ele escutou-me pacientemente, interrompendo-me apenas para confirmar um ou outro detalhe. No final do relato, olhou pela janela, apontando para uma montra, no outro lado da travessa, com cortinas brancas esgaçadas e sujas e um letreiro vermelho colado na vitrina, de letras grossas e pretensamente joviais a anunciar “Trespassa-se”.
«Então, foi ali que fizeste a tatuagem?», perguntou-me.
Acenei-lhe com a cabeça, sem ousar abrir a boca, temendo que qualquer palavra provocasse um novo e inquietante fenómeno.
Fitou-me a medir-me a expressão, o olho são com a húmida tranquilidade da velhice, o olho cego azulado virado para dentro em permanente introspeção. Sabes como ele é, com aquelas pausas demoradas, como se estivesse a escavar sentidos nas palavras mais banais. Depois sorriu e disse:
«Acho que sei o que se está a passar contigo. O melhor é conversarmos enquanto andamos, à maneira do mestre Sócrates.», decidiu.
Era sinal de que a conversa ia ser longa. Caminhámos pela baixa de Setúbal, com o Silva a expor-me diferentes perspetivas sobre as noções de identidade e do eu. Se tiveres interesse, noutra altura conto-te os detarlhes. Terminámos o passeio peripatético defronte do cineteatro Luísa Todi, sentados num banco de jardim, o Silva a segurar a bengala entre as mãos.
«A analogia do Eu como uma narrativa é, na minha opinião, a mais satisfatória das diferentes definições, transversal a tantas áreas do pensamento. Construímos sentidos através de narrativas, explicando o mundo com recurso a histórias, e o mesmo processo é usado para criarmos identidades. Estou a referir-me à dimensão pessoal da narrativa individual que cada um faz da sua vida, em que somos simultaneamente narradores e matéria narrada, dando à nossa existência coesão e coerência. Nós somos criaturas no espaço e no tempo e o presente é vivenciado não como o verdadeiro tempo, mas como o contexto da ação onde se interseccionam o passado e o futuro. E essa ação, minha filha, quando olhas para o palco da vida, como o desse teatro aí em frente, essa ação tem lugar num cenário cultural e entrecruza-se com as narrativas de outros atores. O nosso Eu não está escondido dentro de nós à espera de ser resgatado, está na história que contamos do nosso passado e naquilo que tentamos fazer com o nosso futuro.»
Observou-me a ver se eu dizia alguma coisa. Confesso que estava aturdida com a reflexão, mas indiquei ter percebido a metáfora.
«É mais do que uma metáfora. Suspeito que, sem te teres apercebido, a tua crise de identidade agravou-se ao ponto de criar uma singularidade no plano narrativo. Nada demais, uma inclinação mínima, mas o suficiente para começares a cruzar-te com planos narrativos de diferentes paralelidades. Ao contrário do que é comum pensar-se, as narrativas não são lineares. Assemelham-se mais a sequências geométricas com variadas configurações, das circulares às icosaédricas e outras mais complexas, justapostas verticalmente. Explicando com maior detalhe, cada configuração geométrica corresponde a uma dada configuração da narrativa pessoal de um indivíduo, que se justapõe a outra configuração e a outra configuração, cada uma delas assentes em sucessivos planos narrativos que se estendem, em potência, ao longo de sucessivas paralelidades, com uma alternância parecida à das luzes estroboscópicas. As paralelidades onde os planos narrativos se podem realizar estendem-se infinitamente, paralelas umas às outras, e correspondem, de certo modo, ao conceito de espaço, enquanto as luzes estroboscópicas marcam cadências que, se quiseres, traduzem o nosso conceito de tempo. Tem em mente que há uma ligeira diferença entre cadências e sequências. Na cadência, tens liberdade para ler narrativas verticalmente para cima e para baixo. É tão rápida a cadência que dá uma sensação de continuidade dos planos narrativos. Agora, talvez mais difícil de explicar, os planos narrativos são abstrações e cada um deles corresponde ao conjunto de todas as configurações narrativas que potencialmente poderiam ocorrer numa dada paralelidade. Por essa razão, o plano narrativo funde-se com a paralelidade, embora sejam distintos. Como os planos narrativos são abstrações, planos em potência, nunca ocorrem verdadeiramente ou, pelo menos, nunca na sua completude. A sua face material é a configuração narrativa, que tem lugar num determinado ponto da paralelidade. As configurações podem ocorrer em qualquer ponto da paralelidade, o que significa que, potencialmente, as possibilidades de configurações narrativas pessoais são infinitas. Contudo, como todas as configurações narrativas são perenes e estão interligadas umas às outras, influenciando-se mutuamente, existem restrições naturais no nexo entre elas, isto é, na articulação das diferentes sequências narrativas entre cada configuração.»
Acenei com a cabeça mecanicamente, mais para indicar que estava a prestar atenção do que a compreender verdadeiramente o que ele estava a tentar explicar.
«A melhor metáfora que conheço, e a mais deliciosa, é a do bolo mil folhas. Cada folha é uma paralelidade e a configuração da narrativa pessoal é o creme entre elas. Quando dás uma dentada num mil folhas, não é só o creme da camada onde a tua boca toca que é afetado. Todo o creme nas outras camadas, isto é, todas as configurações da narrativa pessoal nas diferentes paralelidades se deslocam. Às vezes, a narrativa sai toda para fora!», riu-se, com uma expressão gulosa que me fez lembrar o anúncio do Boca-Doce. «Quando há um ato narrativo – há quem lhe chame verticularização narrativa – e ocorre uma configuração narrativa numa dada paralelidade, aquela passa a ser o ponto de ligação com a anterior configuração e todas as outras que estão subjacentes, isto é, todas as configurações narrativas mudam de posição. São arrastadas e forçadas a harmonizar ou a atualizarem-se com a configuração narrativa mais recente. Dito por outras palavras, isto acontece porque, ao narrarmos um evento passado, ele vai depender da configuração da narrativa pessoal no momento em que esse evento é narrado. Neste sentido, o modo como narras o teu primeiro dia de escola é diferente quando o narras aos 10 anos, aos 20 anos, aos 40 anos ou aos 80 anos. As configurações ao longo da tua narrativa pessoal formam um harmónio flexível que tentará ajustar-se simultaneamente à disposição de todas elas, procurando formar um todo coerente e coeso. Isto é possível porque as luzes estroboscópicas são cadências e, como tal, permitem o reajuste retroativo das configurações das paralelidades subjacentes, sempre dentro dos limites da coerência e da coesão.»
Nesta parte, comecei a sentir o sentido da coisa, mas continuava sem perceber qual era a anomalia.
«A anomalia está na singularidade que referi antes. As paralelidades são virtualmente infinitas, mas se pensares nelas como camadas de um mil folhas do tamanho do universo, consegues perceber que ligeiras alterações do ângulo no seu centro podem fazer com que os seus extremos fiquem como que torcidos e estejam significativamente mais afastados daquilo que será a regularidade da paralelidade. Como os planos narrativos e as paralelidades são coincidentes, embora sejam respetivamente realidades abstratas e realidades concretas, se um ou mais planos narrativos sofrerem, por algum motivo, uma potencial oscilação ou enviesamento, poderão torcer com eles uma ou mais paralelidades, ao ponto de se tocarem ou mesmo de se cruzarem umas com as outras. Isto fará com que as configurações narrativas se comportem de modo diferente, correndo até o risco de coincidirem no mesmo ponto em paralelidades distintas, algo que poderá ser catastrófico. Este fenómeno é denominado por alguns como perpendicularidade – um termo com qual não concordo muito porque o fenómeno é mais angular do que perpendicular, embora reconheça que perpendicularidade comunica melhor esse cruzamento.»
«E isto explica o que aconteceu com a tatuagem?»
«Poderá explicar, mas estamos no domínio da teoria. Possivelmente, houve uma perpendicularidade que levou o teu plano narrativo a cruzar-se com outras paralelidades, proporcionando a ocorrência de uma configuração narrativa pessoal naquilo que seria um outro plano narrativo. O teu regresso ao passado arrastou consigo todas as outras configurações, porque elas são modificadas umas pelas outras, pelas que aconteceram antes e depois. Contudo, dada a necessária harmonização das sequências narrativas, quando o teu plano narrativo realinhou com a paralelidade original, as configurações narrativas que estavam nos planos narrativos sobrejacentes, ou mais recentes, se preferires, àquele onde a perpendicularidade ocorreu foram todas reajustadas e atualizadas. Ergo, a tatuagem nas tuas costas.»
Levei a mão ao ombro, como se tentasse alcançar o desenho na minha pele. Era uma presença física constante.
«Mas porque é que o Manel não me disse nada hoje? Ele estava lá e, pelo que estás a dizer, ele deveria ter sido afetado também ou, pelo menos, lembrar-se de algo!»
«Isso é mais difícil de explicar.», suspirou o Silva. Parou uns instantes, a deslizar o olho são de um lado para o outro como se estivesse a ler um quadro branco invisível cheio de anotações. «Há uma teoria, mas é apenas uma teoria, que propõe uma explicação semelhante à do fenómeno dos buracos negros. Tal como a presença de massa e energia provoca uma curvatura do espaço-tempo, a que chamamos gravidade, força que regula a atração entre corpos, a matéria linguística pode criar um efeito no espaço-tempo denominado recursividade. Esta força é fundamental para criar frases porque permite gerar estruturas complexas a partir de elementos mais simples, narrativas dentro de narrativas que podem gerar narrativas que podem gerar narrativas e assim por diante, infinitamente complexas.»
Com as mãos, tentava reproduzir movimentos orbitais e o encaixe de frases subordinadas.
«Nos buracos negros, a extraordinária acumulação de matéria monstruosamente comprimida em espaços diminutos gera uma gravidade excecionalmente forte, tão forte que nada, nem mesmo a luz, consegue escapar. De modo semelhante, uma absurda recursividade de narrativas irá criar um fenómeno chamado mise en abyme, que levará o narrador e as coisas narradas a um mergulho infinito do qual nada nem ninguém conseguirá escapar.»
«Eu entrei num buraco negro?»
«Não sei. Acho que no caso do teu encontro imediato com os teus amigos de infância, foi algo semelhante ao da passagem da luz nas imediações de um buraco negro. Quando isto acontece, há uma curvatura da luz que, ao perder energia a tentar escapar à atração gravitacional, sofre um desvio para o final do espetro eletromagnético, tornando-se mais vermelha. No evento narrativo que viveste, terá havido uma força que retirou centralidade às configurações narrativas dos teus amigos, possivelmente desalojando-as da sequência narrativa onde estavam. Provavelmente, estão agora à deriva, perdidas em alguma paralelidade. Têm sido frequentemente reportados avistamentos de sequências narrativas à deriva.»
«E por isso, ele não se recorda?»
«Possivelmente, mas poderá ser por outras razões. Nem todas as configurações narrativas são memoráveis, há muitos planos narrativos obscurecidos que nunca mais são recuperados. Tanto a física quântica como a teoria da narratividade são disciplinas muito abstratas e muito há para investigar.», desculpou-se. «Agora… o mais difícil de explicar é o que te aconteceu depois da tatuagem. Parece ter sido o princípio de um colapso narrativo e, francamente, não sei como conseguiste regressar.»
Senti-me zonza e unhei o banco para segurar a minha vertigem até sentir uma dor que restabeleceu o equilíbrio.
«Há alguma razão ou causa?», lamuriei.
«Mais uma vez, só posso fazer suposições. Acho que tudo se deve à tua crise de identidade que, por algum motivo, travou o teu processo narrativo. Provavelmente, criou uma torção analéptica do espaço-tempo com níveis de energia tão altos que provocaram uma perpendicularidade. Felizmente, a tua narração não se fixou nesse paralelidade. Não sei o que te teria acontecido. Em teoria, podem dar-se transições suaves entre planos narrativos, mas é preciso um certo controlo metalinguístico. No estado narrativo em que estás, terias muitas dificuldades em gerir ruturas ou deslocamentos cronológicos. As configurações narrativas suprajacentes poderiam sofrer uma regressão proléptica e criar um colapso oximorótico brutal e permanente na tua narração. Ou poder-se-ia dar uma explosão catafórica e projetar-te para um plano narrativo suprajacente num estado narrativo degradado, provavelmente catacrética.»
Anuí com um aceno. Senti que estava num consultório a ouvir um discorrer técnico sobre os resultados de um exame médico demasiado complexo para o meu entendimento. Bastava-me perceber que fora muito feliz no desenlace do evento.
«Mas há mais.», disse o Silva num tom sério.
«Há mais?», retorqui, começando a ficar preocupada.
«As paralelidades não são espaços exclusivos. Elas são infinitas sucessões de infinitudes onde podem ocorrer potencialmente todo e qualquer plano narrativo, além de outra matéria e eventos que ainda estão por identificar. O que significa que, do mesmo modo que as tuas configurações narrativas podem ocorrer em duas paralelidades diferentes, também as configurações narrativas de outros podem ser, de certa maneira, afetadas por essa perpendicularidade. E havendo um deslizamento do plano narrativo, poderá acontecer que narradores do passado se cruzem connosco no presente.
«Quer dizer que vou ver gente morta?»
«Não necessariamente morta. E em rigor, essas configurações narrativas têm a mesma consistência geométrica, chamemos-lhe assim, que as denominadas originais dessa paralelidade. Narrativamente, estão bem vivas.»
«Estás a dizer-me que o casal francês e os amigos deles são de outras… para-le-li-dades?»
«Acredito que sim. Aliás, tudo quanto é possível ser narrado pode ter configurações narrativas e, desse modo, a tua amiga Ms. Lortz pode bem ser… a Ms. Lortz.»
Senti um forte arrepio a rasgar-me a espinha até à base da nuca e virei-me para o outro lado da avenida, onde estava o edifício da biblioteca. Suponho que a minha cara traduziu a profunda ansiedade que tudo aquilo me provocava. E se consigo agora comunicar-te o que o Silva explicou é porque lhe pedi para repetir tudo ao mesmo tempo que convertia em texto no smartphone.
«E o que faço então? Resolvo o meu problema de identidade ou tento corrigir a perpendi.. o… o plano narrativo?»
«É simples: abres a caixa para ver se está lá o gato»
Riu-se como louco. Eu sorri por contágio, mas não percebia nada.
«Já ouviste falar de uma técnica de terapia chamada “suspensão da descrença”?» Fiz sinal que não com a cabeça. «Foi desenvolvida por dois ingleses, um pedopsicólogo chamado Billy Wordsworth e um psiquiatra de nome Sammy Coleridge, que trabalha com dependência de substâncias. Aquilo que eles promovem é uma abordagem que visa provocar, num primeiro momento, o transbordo espontâneo de poderosos sentimentos e, posteriormente, a recoleção dessas emoções em tranquilidade. Para isso, levam os pacientes a suspenderem as suas descrenças e a deixarem que a imaginação flua e estabeleça o sentido daquilo que é verdadeiro.»
«Ó Silva, não queria andar a tomar comprimiditos para alucinar… Já me bastaram as de ontem à noite, que deixaram literalmente marcas na pele.», brinquei.
«Não é preciso tomar nada. Basta suspender a descrença e deixar a imaginação transbordar os limites que habitualmente lhe impomos. Há um conjunto de preceitos a seguir, algumas estratégias de controlo e certas ferramentas para gerir o processo terapêutico.»
«E há alguém que faça esse tipo de terapia cá?»
«Pessoalmente, não conheço ninguém. Mas melhor do que especialistas, conheço alguém que está na mesma condição que tu. E acredito que poderão trabalhar em conjunto.»
«Como eu? Alguém com o plano narrativo, como é que é, destrambelhado? A sério? E fazemos o quê? Terapia de grupo?»
«Talvez algo diferente.»
«Mas isto é comum? Já viste isto acontecer a alguém?»
«Não precisas de te preocupar. Não é comum, mas acontece.» Fixou o olhar em mim, com um sorriso de compaixão. «Se calhar, acontece mesmo à tua frente e nem te dás conta disso.»
As mãos do Silva pousaram sobre as minhas, o frio dos ossos a perpassar pela sua fina pele. Soltou uma leve gargalhada que lhe chocalhou o frágil corpo. Depois, fixou-me um olho húmido de compaixão e outro, o azul de cegueira, trocista. «Não procures ajuizar tudo isto, é demasiada física quântica misturada com a incerteza narrativa.»
Riu-se novamente e depois disse num tom mais sério.
«Mesmo no momento da nossa morte, prematura ou esperada, nada garantirá que as nossas vidas façam sentido. Nós somos atores, espíritos que se dissipam em ar imaterial, dizia o bardo. E como a insubstancialidade deste banco, daquelas árvores, do próprio céu que nos cobre, tudo se dissolverá sem deixar rasto. Somos da mesma matéria dos sonhos e as nossas vidas desvelam-se num sono».
Fiquei a olhar para ele com um olhar perdido.
«Aquilo de que precisas é de narrar a tua história. Deixa-me falar com esse meu contacto. Tentarei dar novidades esta semana, não te preocupes. Por agora, chega de conversas de velho. Vá, vai à tua vida. Ah, e atenção, evita o contacto com estranhos nos próximos dias, está bem?»
Lembrei-me imediatamente da promessa feita dos encontros dos pedidos de desculpa – provavelmente outros cruzamentos de narrativas ou conjunturas narrativas ou o que seja –, mas decidi que não iria lá pôr os pés. Não me importo que façam queixa e que me suspendam da biblioteca. Até ter a certeza de que a Ms. Lortz não está lá, não tenho intenções de me aproximar daquele local. Ainda tenho muitos livros para ler em casa.
Levantei-me e logo uma voz clamou a atenção do Silva.
«Idalécio!»
Deixei-o com os amigos que se lhe juntavam e acelerei o passo de regresso a casa. Não sei qual é o plano do Silva, mas ele tem razão: tenho de me narrar. Preciso de ser algo mais do que apenas uma personagem na história de outras pessoas. Vamos ver o que me espera.
Nem tudo chega às nossas mãos
Pode ser uma canção sobre amor, política e drogas, mas o seu possível tom negativo de resignação não implica que não tentemos ter aquilo que queremos.
Suspendam as descrenças
William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge foram dois dos principais poetas do romantismo inglês. Amigos e colaboradores, revolucionaram a poesia com a publicação conjunta de Lyrical Ballads (1798), obra que marcou o início do movimento romântico na literatura inglesa.
A vida está nas tuas mãos
Mesmo que tudo esteja predeterminado ou que o mundo seja um caos aleatório, alguma parte da nossa vida está nas nossas mãos. «It’s my life»