Tenho mais novidades, mas deixa-me acabar esta história antes que me escape qualquer detalhe. Já percebeste: foi uma noite que não pertence a este mundo. E o mais estranho ainda não tinha acontecido.
Estava a tentar perceber como tinha ido parar ao meio da Rua dos Mareantes, afastada da entrada do “La Bohème”, quando ouvi uma voz atrás de mim, familiar, mas distorcida como numa gravação antiga.
«Olha quem está aqui, estás boa?»
Virei-me e dei de caras com um estranho quadro: a minha velha guarda, os meus amigos de infância, que já não via todos juntos há imenso tempo, desde a adolescência, talvez. O Manel dos Frades, com olheiras na pele fina do rosto, cavadas por longas horas de trabalho e muitas de borga também; o Mac, sempre perfumado para a tentar mascarar da sua memória o cheiro gorduroso da fast-food; o Barão, magro e pálido na sua elegância de aristocrata falido; e o Mr. T “himself”, chegado de Cebolas de Cima, a exibir a caveira desbotada na t-shirt da última tourné da sua banda de heavy-metal. Ia perguntar-lhes o que é os quatro andavam a fazer ali, todos juntos, mas eles anteciparam-se em coro, como um quarteto desafinado.
Ia responder que tinha estado num salão de jazz no “La Bohème”com um acesso secreto que nunca tinha visto, mas contive-me.
«Ah, fui ao “La Bohème e vou agora para casa.», respondi, olhando para o relógio.
«Esta noite? Mas o “La Bohème” está fechado, o Paulo tirou uns dias de férias.», observou o Manel.
«Não está nada…», asseverei, confusa.
«Tu fumaste alguma coisa… Ou tomaste alguma coisita?…», sorriu o Mr. T com visível curiosidade.
«Não fumei nada, tu sabes que nem fumo. Só bebi um pouco de absinto.» repliquei, mas a dúvida já se plantava em mim.
«O melhor é nós levarmo-la a casa», ponderou à distância o Barão, a tentar livrar-se da chatice. E depois acrescentou, com um riso de miúdo: «Temos de ir trabalhar e a Fábrica espera por nós.»
«Fábrica? Trabalhar?»
«Ele quer dizer a discoteca.», explicou o Mac.
«Mas isso fechou há séculos.», observei.
«Ele está enganado, nós vamos ao Círculo.»
«Mas o Círculo também já não existe. Não me digas agora que vão ao Outubrus? Ao Café com Estória? Mas o que é que está a acontecer?!»
Ouvi-a a minha voz a arrastar-se para longe. Esfreguei os olhos, abri-os e tudo estava na mesma. O Mac aproximou-se, o sorriso cansado a esticar-lhe os lábios como uma máscara. Estendeu o braço por cima dos meus ombros, casualmente, como tantas vezes tinha feito no passado, e pôs-me a andar com um suave balanço.
«Anda, nós levamos-te a casa.»
O contacto, no entanto, foi tudo menos casual. Comecei a sentir os dedos dele a tocarem na minha pele como leves picadas agudas no ombro, como se pequenos espinhos tivessem trespassado o tecido da minha camisola. O calor humano que esperava sentir estava ausente; no seu lugar, havia algo áspero e frio, como o toque de uma raiz seca arrancada do solo. Instintivamente, desviei-me o olhar sobre o ombro e, por uma fração de segundo, vi. A mão do Mac — que eu conhecia tão bem — estava transformada. Era uma garra negra e afiada, grotesca com pelos, cada unha suja de algo escuro e pegajoso. A visão durou menos que um pestanejar, e quando me afastei, era apenas a mão dele, normal, com as unhas roídas como sempre.
«Anda», murmurou o Mac, como se nada tivesse acontecido.
Respirei fundo a tentar controlar-me. Comecei a recear que alguém tinha deitado alguma coisa no meu copo e sentia um profundo arrependimento de ter tomado aquela bebida verde. Certamente, estava a sofrer efeitos alucinogénios provocados por alguma substância.
Seguimos até ao início da rua do Miradouro, passámos a papelaria Rubi e virámos na esquina da pastelaria da Bia. Pareceu-me ver do outro lado da rua jornais pendurados na papelaria Os Jovens e alguém detrás do balcão, a acenar-me. Não tive tempo para fixar a imagem. Uma aragem passou por nós, desfazendo tudo e todos em pó num sopro, agitando-me o corpo num calafrio. Puxei o fecho do casaco, como se este pudesse dar-me alguma proteção.
O Mr. T caminhava ao meu lado, as botas a ranger a cada passo. Olhei para ele — e o horror apertou-me o estômago. Por baixo da pele, podia ver o crânio. A carne parecia ter-se tornado translúcida, esticada finamente sobre o osso. As cavidades oculares eram poços negros, sem fundo. A boca, semiaberta, exibia dentes partidos e manchas de podridão. Pisquei os olhos — e ele estava normal outra vez, mas agora a caveira na t-shirt dele parecia fitar-me com uma fome silenciosa.
«Estás bem?», perguntou o Mr. T, com a sua voz rouca.
Não respondi. Não conseguia. As pernas moviam-se por instinto.
As luzes da rua Antão Girão piscaram em surtos intermitentes, como se algo estivesse a pulsar nas entranhas da cidade, sob os nossos pés. À nossa volta, as fachadas das lojas tremeluziam, como se fantasmas invisíveis as habitassem. Nas montras, vi rostos que não pertenciam a ninguém que estivesse vivo, como o velho guarda-redes Batista a varrer o chão da sua papelaria. Abri a boca para falar, mas percebi que os meus amigos, caminhando a meu lado, não pareciam notar nada. Ou, pior ainda, pareciam fazer parte daquilo.
«Estás a chegar a casa, viramos ali à esquerda, na Major Afonso Pala.», apontou o Barão.
«Mas eu já não moro ali.»
Não me ligaram nenhuma. O Barão, sempre elegante, tomou a dianteira, mas algo nele estava… errado. Quando sorriu para mim por cima do ombro, vi os dentes. Não dentes normais, mas pontiagudos, de predador. E na montra seguinte, o reflexo sujo mostrava-nos a caminhar uns ao lado dos outros, mas o Barão não existia!
O pânico subiu-me à garganta como um vómito. Inclinei-me para a frente, tentando confirmar o que via — mas antes que pudesse fixar o olhar, o Manel dos Frades puxou-me pelo braço com uma força surpreendente, empurrando-me para longe da montra.
«Cuidado!», disse ele, quase numa gargalhada nervosa.
Mas a forma como o fez foi demasiado rápida, demasiado calculada. Olhei para ele. As olheiras debaixo dos seus olhos pareciam agora cavernas profundas, escavadas a cinzel. A pele à volta estava baça, sem vida, como papel velho e ressequido. Os olhos, habitualmente vivos e trocistas, tingiam-se progressivamente de um negro brilhante. E a mão dele — aquela mão que me segurava o braço — era fria. Gelada, como a pele de alguém morto há muito tempo.
Tentei libertar-me, mas ele segurou-me com firmeza. Pisquei novamente os olhos, e num instante, tudo parecia normal de novo. O sorriso despreocupado do Manel, a gargalhada do Mr. T, o passo elegante do Barão. Tudo igual.
Seguimos pela Major Afonso Pala adentro – a Fernanda a pesar peixe com as mãos ensanguentadas e uma faca ameaçadora na outra mão, o Ti’ Jaquim à entrada da oficina de móveis a rir descontroladamente de boca escancarada e dentes a mais, o snack-bar Girassol e toda a família a gritar e a bater as mãos contra a divisória transparente, presos no interior da cozinha a arder… A sensação de claustrofobia era quase insuportável, a caminhar num pesadelo que só eu parecia ver.
«Pronto, estás em casa.»
Respirei fundo, a olhar para o edifício e a medir o ambiente à volta. Parecíamos estar sós.
«Esta já não é a minha casa.», declarei num tom profundo.
«Esta será sempre a tua casa. A tua memória é a tua narrativa do passado e enforma a construção da tua identidade. A tua essência pode partir da tua existência, mas a tua identidade é a memória da tua experiência, a narrativa que, ao longo do tempo, refazes através da tua existência. E esta casa é a primeira marca da tua identidade.»
Olhei para o velho edifício de dois andares, de fachada escurecida e ferida pelo tempo, e comecei a sentir tudo. O cheiro de peixe a assar na tasca com as portas de “saloon” de cowboys – eram turquesa? – a taberna com matraquilhos gigantes e o cheiro a vinho e a carne frita e o chão com serradura e caricas da Fruto Real com decalques do Homem-Aranha. E entre as duas tascas, na porta do meio, as escadas íngremes, a memória de as subir aos ombros vigorosos da juventude dele – estava numa foto, não estava? – e ela, no topo das escadas, em pose de estrela de Hollywood, a desvelar com a curta saia o perfil atrativo das jovens pernas – outra foto, mas não a cores. Queria tanto subir as escadas e percorrer todas as suas salas e todos os seus corredores, como o tinha feito há muitos anos, pela última vez, a chorar uma despedida inesperada e apressada, a tentar agarrar o máximo de memórias e a encher o coração, quase até rebentar, dos sentimentos e das emoções ali vividos.
A porta de madeira rangeu quando a empurrei. Os outros ficaram para trás, sombras imóveis na penumbra, como sentinelas de algo cujo sentido me escapava. Entrei.
O cheiro foi o primeiro golpe: cera quente e a leve humidade das escadas lavadas a lixívia. A madeira do soalho rangeu sob os meus pés, exatamente como antes. Percorri o átrio onde outrora os hóspedes registavam as chegadas e as partidas, decorado com pequenos quadros de cenas parisienses comprados pelo antigo dono numa viagem com a sua amante a França. Uma cafeteira ainda em efervescência largava um aroma quente que se espalhava até à sala de estar, mas não havia ninguém. O som dos meus passos ecoava vazio. Ainda assim, o ar parecia carregado de presenças invisíveis, de memórias suspensas.
Foi então que ouvi a gargalhada. Um riso agudo de criança, familiar. Arrepiei-me. Segui o som pelo corredor, as portas fechadas dos quartos como olhos semicerrados a espreitar. A silhueta surgiu no outro lado da porta vidrada do corredor para o segundo andar. Uma menina de vestido branco, cabelos castanho-claro, a correr descalça. O coração disparou-me no peito. Eu sentia que conhecia aquela figura.
Chamei-a, mas ela não respondeu. Corri atrás dela, tropeçando em tapetes que se enrolaram sob os meus pés. Ela subiu as escadas e riu-se ainda mais, divertida com a brincadeira e os meus precalços, a voz a ecoar mais distante, no corredor do segundo andar. Subi os degraus em saltos largos e vi-a a meter-se num dos quartos à esquerda, onde eu costumava passar tardes a ler e a cismar sobre a vida, na companhia da minha primeira gata. Quando cheguei à entrada, hesitei. Um bafo frio escapava pela fresta. Empurrei a porta. A criança estava de costas, parada no centro do quarto. A atmosfera era espessa, como se o ar tivesse engrossado.
«Olá…?», arrisquei.
Ela virou-se. O mundo pareceu inclinar-se. A menina era eu, mas não como deveria ser. A pele, pálida e desprovida de brilho, parecia translúcida. Os olhos, grandes e fixos, estavam vidrados, sem alma. Lábios entreabertos, num esgar imóvel. Um cadáver de oito anos.
O chão tremeu sob os meus pés. As paredes começaram a descascar como se fossem feitas de carne apodrecida e o teto estalou de um lado ao outro. Saí do quarto e corri o mais depressa possível em direção às escadas. Um cheiro a bolor e a podridão invadiu-me as narinas. Escorreguei ao longo dos degraus húmidos e moles, o musgo crescido sob as minhas mãos que tentavam travar a queda contínua até à entrada da sala de estar. A casa inteira afundava-se em ruína e esquecimento.
Enquanto fugia, vozes erguiam-se, vindas das paredes, do soalho, da própria estrutura do edifício: fragmentos de conversas que tinha ouvido em criança, gritos distantes de discussões, risos de festas antigas, choros abafados. Vultos atravessavam o corredor à minha frente, alguns deles de pessoas que reconhecia, mas que já pertenciam ao mundo dos mortos. Desviei-me deles em pânico, tentando encontrar a saída. O corredor parecia estender-se sem fim, os quadros partidos no chão, as portas desfeitas, o espaço distorcido num pesadelo. Finalmente, cheguei ao átrio de entrada, arrombei a porta apodrecida e desci sofregamente o lanço de escadas para a rua até cair na rua gelada num silêncio total.
Virei-me para trás.
A pensão era agora o mesmo edifício dos últimos anos, fechado para a existência, as janelas cerradas e a porta da entrada segura com uma corrente a cadeado. Tinha sido tudo uma ilusão. E nem sinal dos meus amigos, a cambada tinha desaparecido. Estava cada vez mais estava convencida de que tinha sido aquela maldita bebida verde ou que alguém tinha deitado alguma coisa no meu copo.
Ouvi um pigarro áspero que me arrepiou a espinha. Voltei-me, mas não vi ninguém. Aos poucos, uma figura foi ganhando forma do nada, como se escondida dentro de si própria. Alto, com a magreza de quem deixou a carne na terra, as calças de ganga justas como pele de cobra a comprimir a ossatura, os cabelos lisos, longos e escuros tresandar a fumo de erva. Os olhos janados fixaram-se em mim com o lento oscilar de quem acabou de pôr os pés em terra. Aclarou novamente a garganta e disse.
«Quando quiseres, podemos começar.»
Começar o quê? Fiquei com a certeza de estar novamente a alucinar.
«Quem és tu?», inquiri.
«Sou o Janus.»
Claro, fazia todo o sentido.
«Tenho tudo pronto, até o desenho da tatuagem.»
Aproximei-me sem medo, certa de que nada daquilo era real.
«E qual é o desenho?»
Tirou um papel amarfanhado do bolso de trás e mostrou-me um esquema em árvore com algo rabiscado no topo. Olhei para ele, olhei para o esquema e novamente para ele.
«É a árvore da vida.», observou com o dedo a apontar para o desenho.
«A sério? Parece-me bem morta.»
Posso gozar com as minhas alucinações como bem entender, pensei.
«Nem por isso. É uma representação de como de um ponto se evolui para outro, de como o que é o passado se adaptou ao presente. E pressupõe a adaptação do presente ao futuro.»
Fiquei em silêncio a pensar em tudo o que tinha acontecido até então. Fez-me sinal para o seguir e entrámos num salão de tatuagens na mesma esquina.
«Senta-te aqui. Onde queres a tatuagem?»
«Não sei.»
«Dói menos no topo das costas.»
«Menos visível, mais pessoal.» pensei. Disse que sim.
«Senta-te ao contrário naquela cadeira com rodas. Tens de tirar toda a roupa da parte de cima»
Mau, esta alucinação está a armar-se aos cágados… Despi-me e sentei-me hirta.
«Tens de te inclinar para a frente um pouco», disse. Empurrou-me a omoplata com a palma da mão, enquanto pressionava a alavanca da cadeira, deixando-me debruçada para a frente, suportada pelo espaldar da cadeira.
«Confortável?»
«Sim.»
Ri-me. Parecia um daqueles tipos no ginásio a trabalhar os bíceps, menos a cara inchada de prisão de ventre.
O som da máquina de tatuar ecoou suavemente na sala de paredes nuas de cal branca e, subitamente, senti as costas frias e um pânico espalhou-se a gelar-me o corpo, os lábios gretados, os dedos cravados nos joelhos, as pernas duras, a respiração parada, inerte. A gentil dor da agulha a penetrar na pele foi-me deixando mais e mais dormente a cada minuto. Os olhos apagaram-se e senti o meu corpo a atravessar o espaldar da cadeira e a passar pelo soalho frio de mosaicos e a sua base rugosa de cimento, a terra compactada das fundações com os restos da antiga construção à mistura, antigos utensílios domésticos, um esqueleto de mãos e pés atados numa fina corrente enferrujada envolto nas partículas de uma mortalha de lençóis, mais utensílios domésticos, os restos de uma outra construção, pedras de uma muralha colapsada, ossos de peixes e utensílios romanos e, por fim, a areia salgada do mar.
Acordei com o sabor de maresia na boca, debruçada na minha cama, a cintura a suster-me a queda. O quarto já estava aquecido pelo sol, por isso percebi ser já meio da manhã. Forcei a moleza do corpo a arrastar-se em pequenos passos até me sentar na sanita, depois ergui-me em esforço de halterofilista e lavei a cara com abundante água fria. Quando vi os meus olhos no espelho, comecei a recordar a noite anterior e lembrei-me da tatuagem. Virei-me de costas e espreitei sobre o ombro. A tatuagem lá estava! Viste a imagem que te enviei? Agora, o problema nisto tudo – se fosse só um – é que a tatuagem foi tingida por um artista janado que não existe. Não sei se te lembras, mas a casa de tatuagens que havia em frente da adega fechou há uns dez anos! Como é que isso é possível? Começo a questionar o que foi real e o que foi imaginação… Não me lembro de como cheguei a casa. Tudo o que te contei anotei o mais depressa possível com medo de me esquecer de algo e para ter a certeza de que não tinha sido vítima de nada. Passei o resto da manhã a pensar, dei voltas na casa a olhar para cada recanto, a medir opções – uma delas, como percebeste, arrendar a casa e zarpar.
Acabei por telefonar ao Silva. Sabes que ele é um dos meus guias desde criança, daqueles com quem partilho as minhas dúvidas e ideias. Combinámos encontrar-nos ao final da tarde para ele ouvir a história que te contei. Daqui a pouco, liga-me a combinar onde. Depois conto-te as novidades.
Ao som das freiras da compaixão
Da Ribeirinha do Sado à Fábrica com viagem pela TGV, as noites sadinas eram ricas de rock industrial.
Educação civil
Ao som dos helicópteros, abria-se a pista de dança na Arrábida e todos voavam com as gaivotas. Só ficaram os tijolos da Seagull.
As matinés dos "Dancing Days"
As primeiras entradas em discotecas eram, para muitos, feitas nas matinés do “String Fellows” e da “Leo Taurus”, onde a playlist era a imagem de marca de cada espaço.