Primeira semana após a partida e o plano da viagem já está em risco de ser alterado. Tudo correu bem até chegarmos ao porto da Baleeira, junto ao cabo de Sagres, a meio da manhã. Foram 93 milhas tranquilas que até deram para dormir profundamente.
Quando o Nómada se aproximou do porto, aproámos ao vento e baixámos as velas. Ligámos o motor e pusemo-nos a rumar lentamente em direção aos pontões, o capitão ao leme e eu a preparar as defensas e os cabos de amarração. Nisto, o motor engasgou-se e morreu. Tentámos pô-lo a trabalhar — uma, duas, três vezes — nada. O vento, que ali sopra com obstinação, começou a empurrar-nos na direcção dos ilhotes do Martinhal. O capitão praguejou baixo e, com um movimento resoluto que não deixava perceber se era animado por raiva ou cálculo, correu para a proa para lançar o ferro na esperança de nos mantermos afastados das pedras.
De súbito, surgiu uma moto de água a grande velocidade, vinda detrás dos ilhotes, como se alguém estivesse a filmar um anúncio de publicidade. O condutor, de fato escuro de neopreno e óculos espelhados, passou rente ao Nómada, fez sinal ao capitão e gritou para que lhe lançássemos um cabo. Sem tempo para hesitações, o capitão obedeceu. Numa manobra hábil e coordenada, a figura agarrou o cabo com precisão, prendeu-o na traseira da mota e rebocou-nos até ao interior do porto, afastando-nos do perigo. Puxou-nos com firmeza até ao interior do molhe e, só quando nos viu seguros por cabos a terra, é que amarrou a mota de água. Em movimentos elétricos, subiu o pontão e dirigiu-se ao Nómada num trote rápido que fazia o cabelo escuro atado num curto rabo de cavalo dar pinotes.
«Ricky.», disse, tirando os óculos, de mão estendida para o capitão, com um sorriso a esticar um fino bigode. O sotaque era indefinido, como se fosse mistura de vários mares. «Tenho um amigo que vos pode ajudar. Holandês. O melhor mecânico da região. Talvez o melhor da Europa.» E sem mais conversa, afastou-se na mota de água com a mesma velocidade com que chegara, deixando no ar um rasto de espuma e mistério.
O mestre que nos ajudou a atracar viu o olhar desconfiado do capitão e aproximou-se para garantir que o mecânico era competente. «Ele tem razão. O mecânico não fala lá muito bem português, chegou há pouco tempo, mas na mecânica, não há melhor, arranja tudo. Se estiverem cá na próxima sexta, a primeira do mês, podem vê-lo no mercado mensal de Sagres. Ele agora tem lá uma bancada com uma série de maquinetas, sobretudo relógios de pêndulo, que compra e recupera.»
O único mecânico naval disponível na região era, de facto, o holandês chamado Chris Huygens. Apareceu depois do almoço. Alto, magro, nariz aquilino, uma cabeleira loira e ondulada que fazia lembrar o David Coverdale em digressão tardia. Cumprimentou-nos com um aceno quase tímido e pôs-se logo ao trabalho. Em menos de cinco minutos descobriu a avaria, mas a reparação só estaria pronta daí a quatro ou cinco dias: era necessário esperar pela chegada de uma peça a encomendar.
«Hei, vocês não querer estar sem motor no mar, certo?», disse-nos com um sorriso enviesado. «Esperar aqui, comer, beber e dormir. Depois fazer a viagem, certo?»
Aceitámos os dias retidos em Sagres à espera da peça para o motor como quem prolonga a antecipação de um prazer, sem pensar demasiado no desvio forçado do plano. O capitão ocupava-se com pequenas manutenções no convés, inspeções meticulosas às velas, ajustes aos cabos que pareciam impercetíveis para qualquer outro olhar. Às vezes sentava-se no tombadilho com um livro técnico entre as mãos, mas mais vezes deixava-o fechado no colo, a olhar o horizonte como quem espera que o vento lhe traga algo.
Eu descia a terra ao início da manhã e caminhava sem pressa até à praia do Tonel. Levava comigo um caderno e um livro de contos, mas pouco escrevia ou lia. Era mais um estar à beira do mundo, onde o azul do céu toca o do mar. As arribas de Sagres projetavam uma sombra pesada sobre a areia, uma presença espessa, e sentia-se um cheiro forte da maresia, misturado com o das algas secas, como se criaturas aquáticas tivessem marcado o seu território antes de recolherem com a maré.
Foi ali que vi o Ricky de novo, na praia, a dar uma aula de surf. Vestia um fato preto com o fecho semiaberto e falava com um grupo de quatro jovens turistas — alemães ou holandeses, a julgar pela cadência da fala. Explicava os fundamentos das marés e da leitura das ondas com gestos largos e frases cheias de imagens. Não era só um instrutor, era um encantador. O grupo ouvia-o com fascínio, riam-se das piadas, imitavam-lhe os gestos. Depois seguiram-no até à rebentação, como discípulos prontos a aprender novos rituais.
Fiquei a observá-los, a sentir o sol que já rondara para sul, a varrer a praia e a aquecer-me a pele. O mar, nesse dia, era uma sequência suave de promessas. Não havia violência, apenas uma cadência quase mística. A cada remada, a cada tentativa de se porem de pé em cima das pranchas, via os corpos caírem num misto de desespero e fé. E, quando por fim um deles conseguiu deslizar alguns metros antes de cair, a alegria era desmedida, quase infantil. Como se por um instante o mundo inteiro fosse uma superfície plana onde tudo era possível.
Há qualquer coisa de espiritual no surf – uma entrega quase religiosa ao ritmo do mar. Não se trata apenas de domar a onda, mas de escutá-la, de saber quando recuar e quando avançar. Os surfistas esperam na prancha como quem reza: de olhos fixos no horizonte, escutam a linguagem secreta das águas, procuram sinais, alinham-se com forças invisíveis. A cada deslizar fugaz, há uma revelação – efémera, sim, mas absoluta no instante em que acontece. Talvez seja isso o que os prende: não a adrenalina, mas o vislumbre de uma ordem maior, uma dança em que o corpo e o mundo se tornam um só movimento.
«Surfar é dançar com atitude. Ou a atitude a dançar, como preferir.»
Sobressaltei-me com a surpresa de alguém a ouvir os meus pensamentos. Um homem de pele curtida pelo sol, com uma barba escura em torno da boca – fez-me lembrar Subotai, aquele personagem do filme do Conan – sentou-se perto de mim com uma prancha ao lado.
«Gerry Lopez», disse, saudando-me com um shaka, o típico gesto dos surfistas. Mudou o olhar para o grupo na água.
«O Ricky tem jeito. Não só para ensinar, mas para lhes dar vontade de ficar.»
«Já o conhece há muito tempo?», perguntei, virando-me para ele.
«Há uns anos. Vai e vem. Passa muito tempo em Marrocos. Entra por algumas aldeias e volta com os olhos mais vermelhos e o espírito mais leve.
Fez uma pausa significativa.
«Dizem que traz calor no bolso e neblina na mochila, percebe?»
Assenti com um sorriso involuntário.
«Também leva o Huygens, às vezes. Mas é segredo. O povo daqui não percebe certas companhias.»
Na manhã seguinte, voltei a vê-los juntos — Ricky e Huygens — numa mota de água emprestada, com duas pranchas presas com elásticos improvisados. Riam-se alto, como quem já acorda dentro do sonho. Ricky, de pé, fazia um gesto vago em direção ao sol nascente; Huygens agarrava-se com um braço ao banco e com o outro erguia algo, talvez uma boom-box, de onde saía um riff distorcido. Arrancaram para longe, a mota a cortar a superfície como uma flecha.
Ontem de manhã, logo a seguir ao almoço, ouvi passos pesados no pontão e o tilintar metálico de uma caixa de ferramentas. Huygens apareceu com a peça nas mãos, ainda a cheirar a óleo fresco.
«Hoje barco voltar a respirar», asseverou, piscando-me o olho.
Não explicou como a peça chegara mais cedo do que o previsto, nem nós perguntámos. Durante três horas trabalhou em silêncio, com o corpo enfiado no motor como se mergulhasse noutra criatura. O capitão vigiava os movimentos com atenção e, a certa altura, os dois trocaram impressões, daquelas que ocorrem entre quem fala fluentemente a linguagem do mar. Quando Huygens voltou a erguer-se, já suado e sujo até aos cotovelos, sorriu com orgulho discreto:
«Está pronto. Motor cantar como novo.»
Fizemos uma nova verificação das condições do barco e um novo teste ao motor. No final do dia, abrimos umas cervejas e ficámos a conversar a bordo.
«Para onde ir?», perguntou ele, entre dois goles.
«Depois de amanhã? Santa Maria. Uma semana de viagem, se apanharmos bom vento.»
«Vocês marinheiros só pensar em vento, não dar atenção a ondas.»
«As ondas são boas para os surfistas. Você é surfista, não é?»
«É minha paixão. Não casado, não ter filhos. Muitas vezes melancólico, mas as ondas ser minha companhia. Eu estudar ondas toda minha vida. As ondas estar em todo lado, no mar, no ar… A luz é onda também. Todos pensar que onda é coisa com uma direção, mas onda espalhar muitas direções, encontrar outras ondas e puf…», fez um gesto de choque com as duas mãos e prosseguiu, quase soletrando as palavras como se as tivesse memorizado. «Interferência construtiva reforça onda, interferência destrutiva anula onda.»
«Tal como as pessoas.», observou o capitão.
«Precisamente!», apontou o holandês com um grande sorriso. «Precisa saber que pessoas ser boa onda para ti, certo? É o meu princípio de vida. Princípio de Huygens.»
Deu uma longa gargalhada, como se tivesse acabado de perceber uma piada cósmica.
«Por isso nunca casado.», lamentou, com um encolher de ombros.
Convidou-nos para bebermos um copo no bar do Ricky: «Música boa, gente boa. Bar de surfistas. Ali esquecemos motor e vento e tudo.» O capitão deixou-se ficar no Nómada, disse que ainda tinha de fazer alguns cálculos de navegação, mas eu fui, movida pela curiosidade.
O bar do Ricky foi fácil de encontrar, numa rua lateral da Comandante Matoso, com a fachada pintada à mão num mural que misturava ondas psicadélicas, caveiras mexicanas e um polvo a tocar guitarra elétrica. Uma tabuleta enferrujada, pendurada por cabos de aço, anunciava “Onda Certa”. Lá dentro, o ar era espesso de sal, cerveja e incenso barato. As paredes estavam cobertas com pranchas partidas, fotografias de manobras lendárias e rabiscos deixados por viajantes de toda a parte. Um daqueles sítios onde parece sempre ser verão e ninguém está com pressa de voltar para casa.
A clientela era uma colagem de vidas em suspensão: surfistas queimados pelo sol, mochileiros de olhos vagos, dois pescadores mais afoitos, a olhar à volta curiosos, e algumas raparigas com ar de quem tanto podia estar de férias como a fugir de qualquer coisa. Havia cumplicidade nos gestos e uma informalidade intensa, como se todos ali se movessem ao ritmo de uma mesma maré. Sim, era, de facto, um lugar fácil de encontrar. O difícil era sair de lá com os sentidos intactos. A certa altura, havia uma alegria meio desgovernada no ar, como se Sagres fosse um porto franco entre duas tempestades.
Ricky surgiu detrás do balcão com um copo na mão e aquele tipo de sorriso que parece ter luz própria. Tinha o cabelo escuro endurecido pelo sal, a pele dourada e os movimentos de quem conhece o mar e o imita. Abraçou Huygens, como quem se reencontra com uma parte de si mesmo, e os dois começaram a circular juntos, recebendo palmadinhas nas costas, cumprimentos murmurados, olhares cheios de algo não dito. Não era apenas amizade. Era outra coisa — um entendimento profundo, como se falassem uma língua debaixo de todas as línguas.
Havia uma espécie de reverência à volta deles. Quando passavam, as conversas baixavam, os sorrisos mudavam de tom. Ricky tinha um magnetismo quase coreográfico; até um gesto banal — pousar um copo, acender um cigarro — ganhava peso. Huygens, com o seu corpo desengonçado e olhos afiados, parecia o eco complementar. Juntos, faziam lembrar personagens de um filme antigo que alguém viveu e não contou a ninguém.
No auge da noite, subiram ambos para uma mesa e começaram a cantar uma versão vibrante de “Here I Go Again”. A multidão aclamava-os com entusiasmo, gritando um nome que alguém lhes tinha inventado:
— H2 Ooh! H2 Ooh!
«Henrique e Huygens», explicou-me um rapaz escanzelado com a pele tão curtida pelo sol que dava ar de estar em Sagres há anos sem nunca ter saído da praia. «O Ricky era campeão, sabes? Ele e a crowd dos irmãos dele. Depois veio um wipeout, um rag rolling trágico do qual ele não conseguiu sair. Largou tudo.» Fez uma pausa dramática, como se revelasse um segredo sagrado. «Veio para cá e abriu a Escola de Sagres, mas não foi bem pelo swell… A especialidade dele é navegar até Marrocos.», sussurrou cumplicemente.
A certa altura, o volume da música desceu e o bar começou a esvaziar. Pensei aproveitar o balanço para pagar a minha conta e seguir a corrente, mas o Ricky colocou dois copos de shot sobre ao balcão num convite para mais uma bebida. Acendeu um cigarro enrolado com um cheiro duvidoso e encostou-se ao balcão a falar como se continuasse um pensamento antigo.
«Queres saber porque é que eu vim cá parar?», disse ele, depois de um silêncio comprido, com a voz rouca do tabaco e do canto. «Nem eu sei ao certo. Talvez o vento me tenha trazido, como a tanta gente que aparece por aqui, ou talvez tenha sido o mar.» Fez um esgar de uma memória dolorosa. «Sim, o mar é como um velho amante manhoso: engole-nos sem aviso, cospe-nos sem explicação.»
Fez uma pausa, passou a mão pelos cabelos, olhou para o Huygens, que se despedia de um grupo de saída do bar, e deixou escapar um riso breve, seco.
«E um dia, entra-me aquele holandês voardor bar adentro, como se fosse só mais um cliente. Mas eu vi logo. Mesmo com os óculos de sol, mesmo com aquele riso ensaiado. Abre-se um bar no fim da terra, espera-se que o vento se encarregue de apagar o que a memória insiste em rever…» Encolheu os ombros. «Sabes do que é eu gosto mais nele? Veste roupas claras, como se não soubesse que o mundo pode ser cruel. Cantamos e fingimos que a eternidade cabe numa canção rock e numa caneca de cerveja.»
Fitou-me com os olhos cansados, mas lúcidos.
«De todos os bares, em todas as cidades, em todo o mundo, ele tinha de entrar logo no meu.»
Fez um riso trocista, ergueu o copo e brindou em voz baixa:
«Aos que partem. E aos que voltam quando já não devia fazer diferença.»
O Huygens juntou-se a nós ao balcão e aproveitei a interrupção no solilóquio do Ricky para me pisgar.
«Tenho de ir. O mar, mesmo quando dorme, exige pontualidade.»
Ficaram calados, não sei se a pensar na minha despedida ou se toldados por outra coisa qualquer.
Hoje de manhã cedo, enquanto bebia café no convés e me preparava para te escrever esta mensagem, vi-os outra vez. Ricky e Huygens, apertados na mesma mota de água, como se aquele espaço exíguo lhes fosse habitual e confortável. Riam com a leveza de quem partilha segredos antigos, daqueles que não precisam de palavras para se manterem vivos. Levavam duas pranchas de surf presas por elásticos gastos e confiança em excesso. Ricky conduzia com o corpo ligeiramente inclinado para trás, um braço erguido no ar como se saudasse os deuses do mar. Huygens agarrava-o pela cintura com um à-vontade sem cerimónia, os cabelos soltos a dançarem à volta do rosto. Gritou qualquer coisa que o vento levou antes que eu pudesse perceber, mas Ricky respondeu com uma gargalhada breve, íntima, como se fosse uma piada contada muitas vezes. A mota afastou-se em direção às ondas maiores, não como quem procura aventura, mas como quem regressa a um lugar onde pode ser inteiro, mesmo que só por instantes. Entre eles, havia uma energia catalisadora – e talvez fosse isso o que os mantinha longe dos olhares da terra firme.
Ricky
Figura conhecida do período dos descobrimentos portugueses, o Infante D. Henrique (1394–1460), conhecido como O Navegador, é uma figura envolta em algum mistério.
Chuva de lágrimas
Foram várias as canções interpretadas pelo duo Henrique & Huygens, mas as versões dos grandes êxitos dos Whitesnake, como Here I Go Again, Is This Love ou Crying in the Rain foram as que entusiasmaram mais a audiência.
Huygens
Christiaan Huygens (1629–1695) foi um matemático, físico e astrónomo holandês. Destacou-se pelos seus estudos sobre a luz e a teoria ondulatória, além de ter sido pioneiro na construção de relógios de pêndulo