Sinto que agora a aventura verdadeiramente começa. Como no folhear das primeiras páginas de um romance, em que a mente analítica sustenta a leitura de cada frase a medir o potencial de interesse dos parágrafos e parágrafos que vêm a seguir, assim passei estes primeiros dias a tentar avaliar o sentido deste peculiar projeto. É um cálculo emotivo, se tal coisa existe, que procura estabelecer uma empatia com algo que não é mais do que expetativas baseadas em sensações construídas sobre alicerces de justificações amalgamadas. Não é para menos, pensando nos riscos inerentes a uma viagem com esta dimensão, mas a minha resistência a lançar-me neste desafio provinha do receio de um eventual divórcio após uma frustrante descoberta do esmorecimento da novidade dos espaços e dos elementos que os habitam, transformados numa rotina de gestos e palavras em dias sucessivamente indistintos. Como te disse, sinto que agora a aventura verdadeiramente começa porque abandonei os estorvos que limitavam o contacto com as emoções.
«É mais do que uma aventura, é a jornada do herói”, foi a reação do nosso primeiro tripulante convidado, José Campelo, à descrição feita pelo capitão da viagem à volta do mundo. Dono de um café em Vila do Porto, na ilha de Santa Maria, e colecionador de banda desenhada da Marvel e da DC, “Zé” Campelo estava no continente numa demanda de livros em segunda mão quando se inscreveu na página online do Nómada para experimentar um regresso a casa por mar.
Sentado no lado de estibordo do convés, recostado nas sanefas de lona do cabo do varandim, falava como um explorador que, tendo regressado à sua comunidade, relata as maravilhas do mundo àqueles que permaneceram nas suas tranquilas rotinas.
«Eu tenho viajado por todo o mundo, todo o mundo mesmo. Já estive na Índia, no Japão, andei na América Latina, no Canadá e nos States– tenho lá família, claro – e da Europa nem falo. Até em África e não foi só nesses sítios de turismo, foi com as tribos tradicionais mesmo. E todas as histórias que ouvi contar, todos os mitos desses povos são semelhantes na sua estrutura».
E com largos gestos circulares a marcarem longas distâncias no espaço e no tempo, descreveu o círculo que compõe a jornada do herói: a partida da sua terra natal após um chamamento para uma aventura, eventualmente com a assistência de alguém mais sábio que o orienta no caminho para uma terra que lhe é estranha; depois de passar por vários percalços, o herói enfrenta o seu grande obstáculo, entra primeiro numa crise, mas depois supera esse momento, por vezes através de um processo de morte e renascimento, superando o obstáculo e acedendo ao tesouro; por fim, há o regresso à sua terra natal, em que o herói já não é a mesma pessoa que partiu e, face a essas mudanças, segue resoluções para mudar a sua vida anterior. «Esta será a vossa jornada e a vossa vida não será a mesma quando regressarem ao porto de partida».
«Ahm…», interrompeu o Carlos Sage, o outro passageiro, sentado no lado de bombordo, o pé fincado no bordo do assento para não deslizar com a ligeira inclinação provocada pelo vento no veleiro. Era um controlador aéreo que tinha sido destacado para Santa Maria para investigar algumas ocorrências menos comuns. «Não parece um pouco conversa da treta?»
A expressão do Zé Campelo gelou como se uma gaivota tivesse descarregado das alturas uma mão-cheia de guano na sua cabeça.
«Desculpe?», exclamou o Zé Campelo.
«Tre-tas», repetiu o Carlos Sage, a fricativa final a sibilar com uma seta mortal. «Aquilo que você fez parece ser uma generalização baseada numa observação subjetiva. Quantos povos há que contam histórias que não se encaixam nesse modelo?»
«As histórias que os povos contam a si mesmos — os seus mitos — são como espelhos onde se refletem os mesmos rostos com máscaras diferentes», começou o Zé, depois de uma pausa demorada. A sua voz era serena, sem revelar uma pretensão de converter alguém. «As formas externas variam, claro, mas por trás delas está a mesma estrutura: o apelo à aventura, o confronto com a sombra, a transformação pela provação, o regresso com uma dádiva para a comunidade.»
O capitão franziu ligeiramente o sobrolho, como se tivesse ouvido algo a ranger no barco. «Isso é uma generalização sedutora, admito, mas perigosa. Será que todas as culturas atribuem o mesmo valor à mesma ideia de herói? Se calhar, nem todas valorizam a individuação, o sacrifício ou sequer a busca pessoal.»
O Zé assentiu lentamente, sem pressa de replicar. «Sim, as diferenças existem. Mas eu não estou a referir-me a uma estrita uniformidade de conteúdo — é uma unidade de função. Os mitos não têm de partilhar os mesmos símbolos nem as mesmas narrativas literais para cumprirem a mesma função psíquica: a de conduzir o ser humano de uma fase da vida para outra, de um estado de consciência para outro. São mapas de transformação.»
«Mas mapas de quê, exatamente?», insistiu o capitão. «Porque os dados da antropologia mostram uma variedade assombrosa de valores éticos, de papéis sociais, de estruturas familiares, até de perceções do tempo. Em certas mitologias, o caos é visto como contraparte necessária da ordem, para impedir a estagnação e rigidez; noutras, a ordem é imposta como ideal absoluto. A sua ideia de um inconsciente coletivo parece-me, com franqueza, uma simplificação.»
«Talvez o seja», concedeu o Zé, sorrindo com generosidade. «Mas repare: mesmo nas cosmologias mais distintas, há sempre uma tentativa de explicar o sofrimento, a origem do mundo, o destino após a morte, etc. Os símbolos mudam, os nomes também, mas a angústia e a maravilha — essas são universais. O homem do Ártico e o camponês dos Himalaias podem não partilhar uma só palavra, mas ambos olham para o céu e perguntam: “O que há para além disto?” E é dessa pergunta que nasce o mito.»
O Carlos abanou a cabeça, atalhando de imediato. «A ciência também nasce dessa pergunta. Com a diferença de que nos dá respostas verificáveis. Não estou a dizer que o mito não tenha valor — tem-no, como expressão cultural, como arte. Mas quando fala em função psíquica universal, está a aproximar-se perigosamente da ideia de uma natureza fixa, de um dogma. E essa ideia já foi usada demasiadas vezes para apagar diferenças, justificar imposições, colonizar mentes.»
O Zé permaneceu em silêncio por instantes. «Não estou a propor que os mitos nos digam o que pensar, mas que nos ajudam a sentir que não estamos sós na nossa travessia. A ciência ilumina o mundo exterior, o mito, o mundo interior. Precisamos de ambos.», conclui, dando um gole de água, sentado na mesma posição, tranquilo, como se não fosse novidade receber o escrutínio de uma assistência.
O Carlos abanou a cabeça. «A mitologia pode ter nascido da necessidade de dar forma ao invisível ou de superar o trauma de eventos naturais, como a morte. Quando não sabíamos como se moviam as estrelas, dizíamos que eram os olhos dos deuses. Mas agora, não precisamos mais dessas histórias para compreender o mundo.», disse.
«A ciência, no fundo, também nos conta histórias.», contrapôs o Zé Campelo.
O Carlos soltou um resmungo e prosseguiu, num tom um pouco sarcástico. «Se são histórias, são muito diferentes na estrutura narrativa. A ciência propõe hipóteses, testa-as, corrige-se a si própria continuamente.». Depois continuou, num tom mais conciliador. «Não nego que haja uma beleza narrativa no modo como compreendemos o universo. Olhe o Big Bang. É quase poético.»
«Exacto! O Big Bang é o mito moderno da criação. Um ponto de origem absoluto, o “omphalos” do universo, a matriz. É Apolo a disparar a primeira seta de luz no caos primordial. A ciência criou uma mitologia, só que, agora, os sacerdotes usam telescópios em vez de incenso.»
O Carlos riu-se alto. «Sacer…», soprou. Respirou fundo. «Os dados que temos são concretos. Sabemos que houve uma expansão inicial, temos provas.», contrapôs. «Não precisamos de um Apolo a disparar setas no caos primordial, pelo menos não para explicar algo.»
«E quem lhe diz que alguns de nós não precisam dessa distorção para viver?», respondeu o Zé, tranquilo. «Na semana passada, ao apanhar o avião para o continente, cruzei-me com um astronauta que me contou como tudo mudou quando viu a Terra do espaço, pela primeira vez. Aquela bolinha azul sem fronteiras… Está a ver? Aquilo foi um ato de revelação, de algo superior a ele. É difícil fazer sentido do universo a partir da lei da atração dos corpos!»
Carlos suspirou, torcendo a cara como quem tenta controlar uma emoção interna.
«Reconheço o impacto emocional que o universo pode criar, até as próprias descobertas científicas podem criar esse efeito. Mas não é lá por vermos a Terra numa outra perspetiva que temos de procurar outras explicações para os factos, nem tornar a ciência numa religião, como já alguns fizeram.»
«Claro que não. Torna-a numa matriz para novos mitos.»
«O quê? Buracos negros, matéria escura, entropia?»
«Talvez, mas não como deuses com nomes. Como metáforas. É bem melhor do que ter mitologias com pretensões a ciência. Quando as religiões vêm dizer que uma certa entidade é o criador do mundo e é também o autor de um livro com instruções sobre como viver nesse mundo e como o interpretar, estamos condenados ao dogma. Não há lugar para contradições entre eles. O que é um inferno.», apontou com ironia.
O Carlos sorriu.
«As religiões são construções, sistemas simbólicos criados para dar forma ao mistério da existência. Os problemas começam quando as metáforas são lidas como factos, os símbolos como dogmas.», prosseguiu o Zé Campelo.
«Como a literalidade da Bíblia?», apontou o capitão.
«Ou do Alcorão, ou do Rigueveda, ou da Torah», completou o Zé. «Quando se exige que um mito seja verdade histórica, ele perde o seu poder. Passa a ser usado como arma, como fronteira, como bandeira. A função do mito é abrir, não fechar. É unir, não dividir.»
«Não vai fazer muitos amigos em certos círculos ao dizer isso. Chamar mitologia à religião parece, a muitos, uma forma de rebaixamento. É como se estivesse a dizer que eles vivem ficções ou fantasias…»
«O que não é nenhuma mentira…», acrescentou o Carlos em surdina.
«Além disso, é a principal ou mesmo a única identidade para muita gente.», salientou o capitão. «Muitas pessoas definem-se por serem parte de um grupo religioso por oposição a outras que seguem um outro Deus qualquer.»
«E é por isso que a ideia da religião como mito é atacada por aqueles que estejam implicados numa ou noutra religião. Pensar nas religiões como metáforas, personificações das nossas experiências mais profundas transmitidas de geração em geração, tem dois efeitos: por um lado, desfaz o caráter único de cada religião; por outro lado, faz com que não sejam imutáveis no tempo e erode as tradições. Por exemplo, já não se vê por aí gente a falar de mulher adúlteras, muito menos a apedrejá-las.», disse o Zé Campelo.
«Aí é que se engana. Ainda subsistem muitos imbecis que tentam fazer isso», lembrei.
O Zé Campelo acenou com a cabeça. «Certo. É por isso mesmo que quando uma mitologia se torna uma religião ela perde a capacidade de se ler a si própria como metáfora, endurece. Torna-se literalista, dogmática, e passa a exigir a crença e a obediência. Um monolítico incapaz de refletir o fluxo da natureza humana. O que era ponte para o mistério torna-se muro.»
«E os que constroem muros têm medo do que está do outro lado.», sublinhou o capitão.
«E esquecem-se de que a jornada do herói começa, precisamente, quando ele ultrapassa o muro da vila — quando abandona o conhecido em busca do desconhecido.», acrescentou o Zé Campelo.
«E a ciência? Onde entra nisso tudo»?
«A ciência não matou o mito — deu-lhe novas formas. O entrelaçamento quântico ecoa a antiga ideia de que tudo está ligado. O mistério permanece. Só mudou de linguagem.»
O Carlos Sage encolheu os ombros, num gesto de desistência.
«Então dizes que, mesmo num mundo ateu, pode haver religião?»
«Não religião no sentido de adoração cega, mas no sentido etimológico: religare, voltar a ligar. A ciência pode tornar-se o motor de uma nova mitologia planetária. Uma que não dependa da fé num livro antigo, mas do maravilhamento perante o cosmos.», respondeu o Zé. E acrescentou, virando-se para o capitão, como que à procura de concordância. «Navegamos as águas da alma com as velas da imaginação e o leme da razão. E os mitos, quando lidos com sabedoria, podem apontar o Norte.»
O capitão Jackdaw, com o chapéu inclinado a proteger-lhe os olhos da luz oblíqua, deixou-se ficar calado, como quem absorve demoradamente uma ideia.
Não penses que a conversa ficou por ali. O debate prosseguiu ao longo do dia. O Zé Campelo fazia apelo a um inconsciente universal que une todos os seres humanos, o Carlos Sage evocava a necessidade de provas e dados quantificáveis. Finalmente, depois do jantar, veio um silêncio que não era nem de vitória, nem de derrota. O capitão Jackdaw, levantando-se para ajustar as velas e preparar o turno da noite, murmurou apenas ao passar por mim: «De qualquer forma, é bom saber que podemos contar com ambos – com estrelas no céu e com histórias na alma.»
Confesso que me senti dividida entre a perspetiva científica do Sage, um ideal de objetividade que nos liberta de charlatães, e a leitura mítica do Campelo, tão próxima da dimensão humana que parece escapar à árida causalidade mecânica de outras áreas do conhecimento. E agora, depois de ter escrever esta mensagem, a refletir sobre tudo o que se discutiu, pergunto-me: será que as histórias que contamos são o reflexo do que somos, ou será que somos o reflexo das histórias que contamos?
Joseph Campbell
Joseph Campbell (1904–1987) foi um renomado mitólogo, escritor e professor norte-americano, conhecido pelos seus estudos sobre mitologia comparada e religião. A sua obra mais influente, O Herói de Mil Faces, introduziu o conceito do “monomito” ou “Jornada do Herói”
Podemos ser heróis
Criada por Bowie com Brian Eno, a canção tem sido interpretada por vários artistas, incluíndo David Fonseca e Rita Red Shoes. A versão dos Motorhead dá-lhe um peculiar significado. O tema original estará sempre colado a Christiane F. – Wir Kinder vom Bahnhof Zoo
Heroínas com letras grandes
A par da Jornada do Herói, há quem proponha um ciclo alternativo para as heroínas que supere a passividade feminina nas propostas originais de Campbell.