Com tanta água à volta, parece estranho dizer que a viagem tem sido uma seca nos dois últimos dias. O problema é a falta de vento… Para tentar escapar à depressão – a mesma que, aparentemente, causou pequenos tornados aí em terra –, o capitão fez rumo ao Bancos de Gorringe, a 120 milhas de Sagres. Até aí fomos a voar. Depois, apontámos à Madeira e chegámos a pensar que iríamos até parar lá um dia, mas fomos apanhados pela calmaria que vinha a apanhar o restos do reboliço deixado pela depressão… Dois dias de mar completamente liso, a imaginar a Madeira mesmo ali ao lado.
«Não estamos mesmo ao pé da Madeira! Estamos a mais de 200 milhas, isso é mais do que a distância entre Lisboa e Porto.», clarificou o capitão, como se isso nos fizesse mais felizes.
Felizmente, o vento voltou. Só que agora estamos a ir mais para norte para evitar outra baixa pressão que vai passar ao largo dos açores em direção à Madeira e, nesta manobra, estamos a tentar escapar a outra calmaria!…
Há uma certa impaciência na tripulação. Afinal de contas, este é o quinto dia com os quatro metidos no mesmo barco e a ideia de um atraso desagrada a todos. Pessoalmente, estou a morrer por um duche de água quente e uma cama bem assente no chão. Não sofri qualquer enjoo, mas tenho tido o cuidado de beber muita água e comer pequenas quantidades.
O Campelo trouxe com ele uns quantos refrigerantes que deram azo a um debate sobre a indústria alimentar.
«Para além do plástico, o que está lá dentro é puro veneno. Se se quer matar, ao menos faça-o com uma bebida digna desse nome», gracejou o capitão.
«Alguns dos meus clientes no café pedem uma Cola para a diarreia», disse o Zé Campelo.
«Está a ver? São as balelas que, hoje em dia, se espalham pela internet como uma praga.», apontou o Carlos Sage. «Querem ouvir umas dessas balelas?»
Assentimos os três, com o prazer antecipado de quem sabe que vem aí uma boa história.
«O problema de afirmações sobre os efeitos benéficos da Coca-Cola é não só o das fontes, mas até das motivações dessas fontes. Há uns anos foi publicado um artigo num prestigiado jornal de farmacologia e terapêutica alimentar a defender o uso da Coca-Cola para tratar de uma maleita qualquer do estômago que afeta para aí 0,4% da população mundial. Uma espécie de desentupimento do intestino delgado pela ingestão de Coca-Cola que permite dissolver sementes, pelos e fibras. Nem sei se isso será bom… Enfim, o pretenso estudo consistiu na pesquisa de artigos no Google e em dois motores de busca da área da medicina. Os artigos deveriam referir casos de sucesso de uso de Coca-Cola no tratamento da tal condição médica. Encontraram 47 casos e em metade deles a Coca-Cola surtiu efeito. Agora, existem vários problemas com a publicação deste estudo. Estudo… enfim, vamos chamar-lhe estudo para não usar nomes feios. Primeiro, falar do efeito da Coca-Cola na tal maleita é o mesmo que falar do efeito do cozido à portuguesa na prevenção da gota. Era preciso segmentar os ingredientes para saber qual é que produz o efeito: é o chouriço de carne ou o repolho, hum? Em segundo lugar, o que o estudo não revela é a quantidade de casos em que a administração de Coca-Cola não surtiu efeito e que não foram documentados ou publicados. Mais facilmente alguém vem proclamar publicamente os seus sucessos do que os seus insucessos. Terceiro, um estudo verdadeiramente científico teria um grupo de controlo que bebesse uma outra coisa qualquer a pensar que era Coca-Cola para ver a diferença. O mais grave disto tudo é que um artigo miserável, pretensamente científico, é citado na comunicação social para dizer que a Coca-Cola trata uma coisa qualquer. Daí a dizer que afinal a Coca-Cola é boa para a saúde é um simples passo. Amigo Zé Campelo, a indústria alimentar tem mentido aos consumidores, infelizmente com a ajuda de falsos cientistas, tal como o fez a indústria do tabaco. Quando estivermos em terra, envio-lhe um artigo do jornal The Guardian que trata deste assunto.»
«Parece que também na ciência são criados mitos, não é?», observou o Zé Campelo, piscando o olho ao Carlos Sage.
«Há esse risco em todas as áreas, mas isso é porque há sempre quem não tenha escrúpulos e venda a sua integridade. Há cientistas – infelizmente, cada vez mais – que são ladrões, criminosos e marginais e que fazem tudo a troco de dinheiro, estatuto e benefícios pessoais. Isto para não falar no modo como certos paradigmas científicos permanecem inquestionados.», lamentou.
«Então, Sr. Carlos, como é que um pobre mortal pode saber se uma teoria é uma bela descoberta ou uma bela treta?», perguntou o Zé Campelo, meio a sério, meio a rir.
O Carlos encostou-se ao banco do leme com ar conspirador, o vento a levantar-lhe discretamente os cabelos grisalhos.
«Ah, Zé Campelo… Era aí que eu queria chegar. Está na altura de partilhar convosco o meu kit pessoal para detetar balelas. Uma caixinha invisível de ferramentas, mas indispensável par aos dias que correm.»
O capitão ergueu uma sobrancelha. «Isso é tipo o canivete suíço da razão?»
«Exatamente, capitão. Um verdadeiro canivete suíço contra patranhas e pseudociência. Querem ouvir?»
Mais uma vez, assentimos à espera da palestra.
«Então, primeira ferramenta: sempre que possível, deve haver confirmação independente dos factos. Não basta alguém dizer que viu, que leu ou que aconteceu. O que se diz deve poder ser verificado por outros, de preferência de forma rigorosa.»
«É como aquela vez em que o meu amigo Alfredo disse ter apanhado um peixe com mais de um metro nas Calhetas e o único registo é uma foto desfocada com ele a segurá-lo muito perto da câmara», comentou o Campelo.
«Exato», riu-se o Carlos. «Sem uma régua ao lado ou alguém imparcial que tenha visto, ficamos só com a palavra dele — e não há Alfredo que tenha medo de pôr mentiras no enredo.»
Rimo-nos todos da rima.
«Depois, há a necessidade do debate aberto de ideias. Nenhuma teoria deve escapar ao escrutínio. Quando alguém se recusa a discutir o assunto porque a matéria é como é, devemos torcer o nariz.»
«Uma senhora que conheci em Lagos dizia que as plantas da sala sabiam quando ela estava triste», disse o capitão.
«E como é que ela sabia que elas sabiam?», perguntou o Sage.
«Porque uma delas ficava com uma folha caída sempre que ela chorava. Eu disse-lhe que talvez fosse da falta de água. Ela respondeu: ‘Não seja insensível, elas sofrem comigo!’»
«E pronto», riu-se o Campelo. «Debater com alguém que acusa o contraditório de falta de empatia botânica… não é fácil.»
«Muito bem observado. Terceira ferramenta: não há autoridades absolutas. Mesmo os grandes especialistas podem enganar-se. Se Newton e Freud erraram, imaginem o resto de nós.»
«Como quando dizemos que o motor está a fazer um barulho estranho e o mecânico ouve outra coisa?», atirou o capitão.
«Sim. Embora nesse caso talvez fosse bom arranjar um segundo mecânico para ouvir outra opinião», gracejou o Carlos. «Quarta: considera múltiplas hipóteses. Quando vês um fenómeno estranho, pensa em mais do que uma explicação. E evita agarrar-te à primeira hipótese que te agrada.»
«Ah! Dessa eu gosto!», exclamou o Campelo. «Uma vez, no café, o doutor Garcia jurava que o sal rosa do Himalaia curava dores de cabeça só por ser rosa. Eu perguntei se ele tinha experimentado com sal azul, mas não achou graça.»
«Brilhante», riu o Carlos. «E depois temos a importância de não nos deixarmos enganar por falsas analogias. Só porque duas coisas parecem semelhantes, não quer dizer que uma explique a outra.»
«É como a comparação entre o cérebro humano e um computador.», apontou o capitão.
«Sim, que o cérebro processa informações como um software. Já houve tantas comparações: que as nossas mentes eram relógios de água, quadros de ligações telefónicas, etc. Mas ainda estou para ver um computador com dor de cabeça.»
«Exato. A analogia pode ajudar a entender certos aspetos, mas se a usarmos como explicação definitiva, corremos o risco de ignorar a complexidade real do funcionamento cerebral.»
«E há mais. Um bom detetor de balelas exige que a carga da prova recaia sempre sobre quem faz a afirmação extraordinária. Não és tu que tens de provar que os duendes não existem; é quem acredita neles que deve demonstrar que existem.»
«Isto é lindo», murmurou o Campelo. «Mas a verdade é que no mundo lá fora as pessoas adoram essas tretas. Alimentam-se disso.»
«É por isso que a ferramenta mais importante de todas é a curiosidade aliada ao ceticismo. Estar disposto a aprender, a mudar de ideias — mas só quando a evidência o justificar.»
O Capitão aquiesceu lentamente. «A abordagem científica como atitude, não como profissão. Já dizia o meu velho professor de navegação: duvidar é parte do caminho.»
«E ainda há uns truques para apanhar balelas mais rapidamente. Se alguém usa termos técnicos sem explicação, desconfiem. Se há promessas de resultados sem esforço, cuidado. Se apelam à tradição — “sempre se fez assim” —, lembrem-se que também se sangravam os doentes para curar febres.»
Arrepiei-me a imaginar a cena.
O Campelo olhou para o céu, pensativo. «Acho que vou fazer um cartaz para pendurar no café. Cuidado: zona livre de balelas.»
«Boa ideia», riu o Carlos. «Mas lembre-se: o kit não serve para gozar com os outros. Serve para nos protegermos e, quem sabe, inspirar uma conversa melhor.»
Houve um silêncio breve, acolhido pelo som morno das ondas contra o casco. O vento parecia regressar.
«Por isso é que defendo que o mais importante não são as etiquetas de ciência disto ou daquilo, é a abordagem científica. Áreas como a antropologia ou a etnografia, que estudam os mitos das diferentes culturas, têm feito estudos científicos.»
O Zé Campelo acenou com agrado.
Estão a tornar-se compadres. Bem melhor para eles. Numa ilha como Santa Maria, com 4 mil pessoas, será bom terem alguém com quem conversar.
Adoça-me a boca...
Os jornais científicos têm sido usados para passar informação falsa ou desviar atenções, como o fez a indústria alimentar sobre os fatores de risco das doenças cardíacas, desviando a atenção do açúcar para o colesterol.
Carl Sagan
Carl Sagan (1934–1996) foi um astrónomo, astrofísico e divulgador científico norte-americano. Destacou-se pelo seu trabalho na busca por vida extraterrestre e pelo estudo do efeito de estufa em Vénus. Autor de Cosmos e Contacto, popularizou a ciência através de livros e programas de televisão, deixando um legado duradouro na comunicação científica.
Não há fraldas para estudos destes
A selva académica tem promovido práticas predatórias sem qualquer ética. Uma revista científica, supostamente com revisão por especialistas, publicou um artigo sobre uma doença que só existe num episódio da série “Seinfeld”…