6. Abduções e conspirações

May 12, 2025

Prepara-te para mais uma voltinha no carrossel da fantasia… A chegada a Santa Maria não teve nada de convencional. E não foi só por termos passado uma semana de monotonia no mar, sem mais nada para ver do que ondas, em conversa com as mesmas figuras.

Se estás a ler as mensagens pela ordem correta, sabes que o capitão decidiu que eu ficaria ao leme durante a aproximação ao porto. Era madrugada ainda, o céu limpo a perder rapidamente o tom azul-escuro, com as primeiras luzes do dia a tentarem passar por cima das escarpas, vindas do lado leste da ilha. O mar, depois da longa travessia, parecia estar resignado, deixado sozinho pelo vento. Com o motor a funcionar – as velas tinham sido recolhidas antes, quando nos pusemos aproados ao vento para as baixar sem pressas – e eu seguia as instruções do capitão com a concentração de uma estudante aplicada no seu primeiro exame de navegação noturna.

«Mais para bombordo… assim… isso, mantenha o rumo», dizia ele, com a voz seca e calma, enquanto eu sentia o casco deslizar como um animal cansado a regressar a um refúgio.

Quando nos aproximámos da entrada do porto, ele passou-me a mão pelo ombro — gesto raro, quase cerimonial — e assumiu o leme. O Campelo e o Sage já tinham preparado as defensas e seguravam agora as amarras. Eu mantinha o olhar preso nas boias de sinalização, com o cansaço do olhar que já não reage a novos estímulos.

A manobra foi feita em silêncio, quase solene, como se estivéssemos a entrar num lugar sagrado ou proibido. A vila fica mesmo por cima de um morro, vigilante sobre a marina, e sentíamos que qualquer diálogo acordaria toda a população. A água dentro da marina era um espelho escuro e denso. Os cabos foram lançados com precisão. Toquei terra firme com os pés dormentes. O capitão decidiu deixar a limpeza do barco para mais tarde. Depositámos as bagagens no passadiço, ainda meio encharcados do tempo, dos dias, das conversas inacabadas, deixámos o Nómada seguro e fizemo-nos ao caminho.

Já quase no final do pontão, junto aos barcos estacados em terra, aconteceu algo que nenhum de nós conseguiria prever. A primeira luz foi branca. Não branca como a luz do farol ou dos mastros – branca como um estalido dentro da cabeça, um relâmpago que atravessa as pálpebras fechadas e faz do mundo um negativo fotográfico. Houve um som também, ou talvez só o silêncio demasiado denso. Em todo o caso, caiu sobre nós como um véu molhado. Depois, um segundo clarão, talvez mais curto. Foi como se o tempo se tivesse engasgado. E depois, o chão.

Perdi a noção do que era para cima ou para baixo. A textura do pontão sob o meu corpo parecia estranha, como se o mundo se tivesse inclinado num ângulo impossível. Pensei que estava a sonhar, ou que adormecera de repente, sentada no convés, depois de dias sem descanso.

As primeiras sensações que voltaram foram flutuantes: o cheiro salgado da madeira húmida, o gosto metálico na boca, e um zumbido surdo nos ouvidos, como quando se mergulha fundo demais e o mar começa a querer entrar pelos canais errados. Abri os olhos. Tudo me pareceu tremido, como uma imagem mal sintonizada num velho televisor a válvulas. Vi silhuetas desfocadas, muito ao fundo do pontão, recortadas contra o luar e contra qualquer outra luz que, até ali, não existia. O brilho atrás delas tremeluzia como um incêndio distante, mas sem fumo.

Tentei erguer-me, mas o corpo parecia desobediente, as pernas entorpecidas e a cabeça cheia de ecos. Percebi então que tínhamos caído todos. À minha volta, o Campelo ainda deitado, o Sage a cambalear, e o capitão com uma mão no joelho e a outra no punho da navalha – uma velha reação instintiva, decerto, como quem confirma que ainda tem dentes antes de falar.

Foi então que as duas figuras começaram a aproximar-se. Primeiro devagar, como se flutuassem. Depois com passos decididos. O som das solas no pontão era oco, como em câmara lenta. Fizeram-me lembrar uma daquelas cenas de perseguição filmadas em névoa artificial.

O homem vinha à frente. Alto, magro, cabelo escuro e penteado para trás com uma precisão quase cruel. O fato era escuro, de corte antigo, mas impecável. Um daqueles rostos que parecem sempre sérios, mesmo quando sorriem. A pele dele tinha o tom de alguém que não vê o sol há meses. Um tipo de palidez que não se conquista por genética, mas por profissão.

A mulher caminhava ligeiramente atrás, como se o deixasse tomar o espaço, mas sem nunca ficar verdadeiramente em segundo plano. Era mais baixa, elegante sem vaidade, o casaco ajustado sobre os ombros estreitos, a saia abaixo do joelho. Tinha cabelo ruivo escuro, quase castanho, preso atrás, e olhos que, mesmo ao longe, me pareceram saber mais do que era possível. Havia um brilho nos seus olhos que não era bem luz – era cálculo. Como se tudo fosse uma experiência e nós, cobaias acordadas a meio do teste.

«Dr. Sage? Está bem? Está tudo bem com vocês?» A voz do homem era estranhamente clara, como se viesse de dentro da minha própria cabeça.

Sage, ainda meio tonto, ergueu-se em esforço, uma mão em amparo no chão, a outra a massajar a têmpora; o Capitão murmurou um palavrão; o Campelo esfregava o cotovelo. Eu continuei no chão, por instinto, como quem não quer dar o flanco antes de perceber o que está em jogo.

O Campelo sussurrou: «Estás a ver o mesmo que eu?»

«Sinceramente, não sei. Uma mulher e um homem?»

Ele fez um sinal afirmativo.

Os dois aproximaram-se. O homem agachou-se junto a mim e pegou no meu pulso como se estivéssemos numa peça de teatro médico.

«O seu relógio está atrasado nove minutos em relação ao nosso. São 6h30 em ponto», disse, sem me perguntar se queria saber a hora.

Ele usava um relógio analógico, pesado, de mostrador metálico, daqueles que só se vendem em lojas muito específicas onde o tempo é um fetiche. Levantou o braço, comparando com o meu, como quem valida uma peça de puzzle.

«Confirmado.», disse, mais para a mulher do que para nós.

«Isso é um bocadinho invasivo, não?», resmunguei, puxando o braço de volta.

O Campelo sacou do seu próprio relógio de plástico azul. «O meu diz 6h28, mas este nunca se atrasa. Foi comprado na estação de serviço de Estremoz. É japonês.»

O capitão observou com um sorriso trocista. «Isso é quase o mesmo que dizer que compraste um saxofone em Cuba. O meu diz 6h34, e foi-me oferecido por um almirante reformado da Marinha de Guerra chilena.»

O Sage limitou-se a erguer o pulso. Disse que o dele marcava 6h30. «O tempo é relativo», assentou.

A mulher, que até então nos observava como uma psicóloga forense, deu um passo à frente.

«Estamos aqui para ajudar. Há uma ameaça real. O Dr. Sage está a ser seguido por uma organização clandestina chamada GENOMA.»

«GENOMA?», repetiu o Campelo. «Isso é nome de suplemento vitamínico ou de seita?»

«Grupo de Estudos Neo-Ortodóxicos para a Ordem, Moralidade e Autoridade», especificou a mulher, com uma voz mais quente do que a do colega, mas não menos cortante. «Eles sabiam que o Dr. Sage viria a Santa Maria investigar certos fenómenos. Estavam a preparar um rapto encenado como contacto extraterrestre, mas como veio de barco, os planos deles falharam.

O capitão olhou de lado para o Sage, depois para mim. Percebi a troca de olhares. Não acreditamos em gente que aparece logo depois dos clarões a dizer que veio salvar-nos.

«Está tudo muito bonito,» disse o Capitão, «mas quem me diz que vocês não são precisamente do tal GENOMA?. Se o rapto encenado falhou, então quem foi o autor dos flashes de luz que vimos?»

O homem respirou fundo, como quem já passou por isto antes. Abriu o casaco com lentidão medida e retirou do bolso interior um crachá metálico com o símbolo de um olho e letras em espiral: **S.A.D.E. — Serviço de Apoio e Defesa da Epistemologia**.

«Dr. Sage, ligue ao seu contacto no Centro de Estudos Críticos de Barcelona. Como membro da ORBITA, poderá confirmar a nossa identidade.»  

«ORBITA», sussurrei.

«Organização de Resposta às Balelas, Incertezas e Teorias Autoritativas», clarificou o Sage. Caminhou para longe do grupo com o telemóvel já na mão. Não ouvíamos a conversa, mas sabíamos que se alguém podia confirmar aquilo era ele. Eu continuava com os sentidos meio turvos – a audição ainda abafada, como se o cérebro estivesse a reiniciar lentamente, e a vista cheia de manchas, como pós-imagens.

A mulher manteve os olhos em mim, e por um segundo senti-me observada como numa vitrina. Só então reparei: ela usava sapatos de salto quadrado, discretos, e uma pulseira de couro que parecia um relicário. No casaco, um alfinete em forma de espiral. Pequenos símbolos. Todos escondiam códigos.

O Sage voltou.

«Estão certos. Vamos encontrar-nos mais tarde, no centro de controlo aéreo. Há coisas que precisam de ser ditas cara a cara, com calma.»

«Então, mas afinal de quem era os clarões?», insistiu o capitão.

«Há mais interessados na grande peça de teatro que se desenrola no palco terrestre.», sugeriu o agente Raposo. «Noutra altura, capitão Jackdaw, será também informado.

O aviso pareceu ominoso. E nisto, o Campelo interrompeu. «Isso está tudo muito bem, mas isto de participar em teorias de conspiração deixa-me dá-me fome. Vamos lá para o meu café primeiro. Quero um galão e um biscoito de orelha antes que me abduzam outra vez.», gracejou.

Caminhámos aos balanços, subindo lentamente a rampa até à vila, embriagada por uma semana contínua no mar, as pernas a irem abaixo, quando menos esperava, a tentar compensar o impulso provocado por uma vaga imaginária. Junto ao portão da marina, ouvi um ruído de algo a bater atrás de nós. Os agentes já tinha partido, tão misteriosamente como tinham chegado, e não tínhamos visto mais ninguém, mas eu conseguia ouvir o som de madeira a bater no estrado do pontão, como alguém a caminhar com um bastão.

«Vamos.», instruiu o Campelo. Deixei de ouvir o batimento no passadiço.

Nunca pensei que iria sentir-me tão feliz por me sentar à mesa numa cadeira. O café do Zé Campelo é um misto de casa de antiguidades e loja de banda desenhada, com objetos recolhidos em todo o mundo e colecionáveis de super-heróis, rodeados pelo cheiro de café e de comida no ar, o que dá uma sensação de conforto caseiro. Ali nos deixámos estar, mente e corpo mudos, a ver a comida a chegar à mesa em sucessivas viagens da mulher do Campelo.

«Deixem-se estar, dá para ver pela vossa cara que estão muito cansados».

Comemos lenta e silenciosamente, incapazes de falar sobre o que tinha sucedido uma hora antes.

«Parecemos os Vingadores depois da batalha de Nova Iorque».

 

A cara do Campelo estava iluminada com um sorriso de orelha a orelha ao dizer-nos isto. Olhámos uns para os outros e subitamente começámo-nos a rir e só parámos quando a pouca energia que tínhamos se esmoreceu em convulsões pianíssimo. Não sei o que passou pela cabeça do resto do grupo, mas para mim o quadro de quatro moribundos sentados em redor de uma mesa pareceu-me ironicamente distante da disposição heroica pós-aventura. E daí, esta cena repetir-se-á provavelmente ao longo desta viagem.

«Sigam a vossa bênção», instruiu-nos o Campelo durante a boleia até às nossas acomodações. Feitas as despedidas, a troca de contactos e as habituais promessas de um encontro futuro, vamos poder podemos descansar. O capitão ficou ainda a falar com o Carlos Sage no exterior, mas eu vim para o meu quarto, tomar nota do que se tinha passado e enviar-te as mensagens acumuladas de uma semana. E agora que estou mais tranquila, vou dormir sem alarmes. Acordo quando acordar.

 

 

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Quando chegámos ao café do Zé Campelo, ouvia-se esta banda local na rádio Asas do Atlântico. O ritmo contagiante pôs-nos a bater o pé até ao fim da canção. E depois tivemos de sossegar porque “hoje queremos é dormir todo o dia”.

Farol Gonçalo Velho

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.