7. No farol do barbalhudo

May 13, 2025

Passámos o fim de semana a recuperar da ressaca do mar. No dia seguinte à chegada ainda estava com o corpo moído, mas saímos para esticar as pernas e visitar a vila. É uma localidade aninhada em comprimento ao longo de um estreito vale com três ou quatro ruas dispostas da zona habitacional cumeeira até ao pequeno porto acoitado numa apertada enseada sob a vigilância de um antigo forte. Se largasses um berlinde à porta da primeira casa do morro iria descer direitinho para o mar sem se desviar mais do que uma dezena de metros. Do lado poente do porto sai uma estrada que liga ao aeroporto, alinhado com a costa oeste da ilha de Santa Maria. Para leste ficam meia dúzia de lugarejos, vinte ou trinta casas em cada um deles, e o farol de Gonçalo Velho, onde tínhamos encontro marcado para um jantar em casa do faroleiro, um antigo amigo do capitão Jackdaw. O farol fica isolado no topo do extremo da ponta sudeste da ilha, acessível apenas por uma estreita estrada com escadas ao centro. É um desafio para qualquer condutor, mas nada que assustasse o nosso motorista de táxi.

«Eu faço esta rampa com um olho fechado. Conheço os caminhos todos, mas a verdade é que não há muito para descobrir, num dia faz-se o circuito todo. Isto não é como quando estava imigrado em Los Angeles, cada serviço era uma aventura. Mais logo, no caminho de volta, eu conto-vos a vez que levei um tipo à torre Nakatomi.»

Apesar de termos o táxi à distância de uma chamada de telemóvel e de um cigarro, sentimos o isolamento do promontório. Era aquilo que o faroleiro tinha procurado durante muitos anos. Ao chegar à patente de capitão-de-fragata, tinha apresentado um requerimento para ser colocado sozinho naquele posto e, fosse por razões financeiras ou por pressão de algum antigo favor, o pedido fora aceite.

«A minha paixão pela solidão dificilmente poderia ter sido mais completamente gratificada. Eu não digo satisfeito, pois acredito que nunca irei ficar completamente saciado com o prazer que tenho experienciado no dia a dia aqui.», disse.

O seu aspeto físico não denunciava o misantropo que ele proclamava ser. Com o corpo direito como um mastro, o olhar ainda mais firme do que o do Capitão Jackdaw, estava vestido a rigor com o uniforme da Armada, a barba longa aparada à esquadria; parecia estar bem consciente dos preceitos sociais que frequentemente são abandonados por quem está isolado por longos períodos de tempo.

O capitão Jackdaw fez sinal de que queria conversar em privado com o seu amigo, pelo que aproveitei para explorar as vistas. Fiquei siderada. A partir da torre do farol, a costa de Santa Maria estende-se para norte e para poente como um pergaminho antigo, todo ele vincado de ravinas, muros de pedra solta e alguns socalcos verdes que parecem escorregar lentamente para o mar. No lado nascente da ilha, à vista do farol, as pastagens ondulam ao vento em despique com as vagas do mar, salpicadas aqui e ali por pequenas casas de pedra com telhados vermelhos, imóveis numa resignação secular. A arriba desce abrupta em degraus irregulares até às enseadas de calhau negro, onde o oceano espuma num esforço metódico.

Do lado do mar, o mundo abre-se com uma vastidão quase opressiva. Talvez por saber que estava numa ilha, o Atlântico parecia estar em movimento, vindo de um sítio remoto em direção a um lugar qualquer, e quase senti o esforço da terra por baixo dos meus pés a resistir ao arrasto das correntes. Fechei os olhos por instantes, a tentar sentir esse puxão do mar, a ladainha das ondas ritmadas contra as falésias a crescer até se tornarem demasiado humanas como uma prece desesperada. Abri os olhos e senti uma vertigem que se amparou, já em aflição, na linha do horizonte no mar, arroxeado pelo abandono do sol que se escondia no lado oposto do mar. Não se via vivalma. Apenas gaivotas altas, planando com uma lentidão majestosa, como se estive à espera que a ilha se chegasse a elas para então se deixarem pousar de regresso à terra.

«Há dias que passo numa espécie de êxtase que é impossível descrever.», interrompeu o faroleiro, adivinhando as emoções na minha cara. «Não querem ver a vista do varandim do farol?» Acenamos que sim com entusiamo. Apertei o fecho do meu impermeável, mais por um instinto de proteção nas alturas do que para me precaver contra o vento altaneiro.

Surpreendentemente, o interior do farol não tinha a frieza funcional que se esperaria de um posto isolado no fim do mundo. As paredes imaculadas, de branco antigo, pareciam ter sido caiadas na véspera. O chão, de madeira escura encerada, rangia com dignidade sob os nossos passos. Cada objeto, dos instrumentos náuticos às molduras com fotografias a preto e branco, parecia ter sido colocado com uma intenção silenciosa, como num altar secular à ordem e ao tempo. O ostensivo zelo aplicado na arrumação de todas as áreas fazia pensar que estava iminente a chegada de importantes visitantes, por certo bem mais notáveis do que nós ou até mesmo altas patentes numa vistoria de rotina. Talvez algum membro de uma família real no exílio.

A escadaria em caracol, estreita e com curtos degraus, obrigou-nos a uma subida claustrofóbica, queixo encolhido ao peito para vigiar cada passo. Quando erguemos as cabeças, ao emergirmos na cúpula, o mundo abriu-se em todas as direções. A costa recortada, os campos ondulantes, a luz líquida do Atlântico e mais além, o vazio translúcido do horizonte. O mecanismo do farol pulsava atrás de nós com o seu coração de vidro e metal, vivo como uma besta adormecida que levanta por um instante o sobrolho para contemplar os intrusos. O faroleiro mostrou-nos os detalhes do farol com o orgulho contido de quem cuida de um segredo transmitido apenas a um grupo de eleitos.

Descemos de novo, seguindo o faroleiro até à sala de jantar. Havia um toque cerimonial na disposição da mesa envernizada, preparada para uma ceia digna de um navio de bandeira almirante: talheres alinhados com rigor matemático, copos de cristal, guardanapos de linho dobrados com geometria cerimoniosa. Já estava a imaginar ver entrar um criado devidamente fardado para nos servir, mas em vez disso ouvi um som familiar do lado da cozinha que me desconcertou. Apercebi-me então de que estavam preparados quatro lugares. Olhei para o capitão Jackdaw, que evitou o meu olhar a compor a lapela do casaco. Alguém mais viria juntar-se a nós.

Não demorei muito a reconhecer o mesmo bater sincopado no chão que tinha ouvido na marina na noite dos clarões. Era como se alguém se aproximasse de cajado em punho ou com um bastão tosco. Com os músculos tensos, esperava por uma figura ameaçadora; porém, quem surgiu foi um velho apoiado numa perna de pau com uma barba à Abraham Lincoln – que mais tarde me explicaram ser o estilo “Shenandoah”. Era um antigo mestre baleeiro e, aparentemente, a única companhia que o faroleiro admitia ter de tempos a tempos.

«O capitão Ed é um homem como nunca vi. Não fala muito, mas quando o faz, é melhor ouvi-lo.», disse o faroleiro, apresentado o outro convidado.

Não sei como um misantropo pode dizer que aquele homem raramente fala, mas talvez a circunspeção do faroleiro roube a língua ao mestre baleeiro quando eles têm os seus encontros. Não sei o que chamar àqueles dois. Ao faroleiro chamar-lhe-ia lunático, não fosse precisar também dessa palavra para descrever o homem sentado ao seu lado. Quando o vinho foi servido, o mestre baleeiro ergueu-se do assento como se, de repente, se tivesse apercebido da sua deixa. Ergueu o copo à altura do olhar, de braço estendido, e como um ator shakespeariano, soltou um rol de sílabas jâmbicas encrespadas num mar de histrionismo.

«Oh, excelso néctar digno do Elísio, vindo das mãos do grande Dionísio! E que vejo eu aqui, no centro do repasto?», fixou o olhar no frango assado. «Um divino manjar vindo do Olimpo tão vasto.», declamou, erguendo a embalagem de alumínio, revelando uma etiqueta colada ao fundo onde se lia “Snack-Bar A Travessa – Frango na brasa, mas sem pressas”.

E assim foi todo o jantar. O austero faroleiro e o burlesco mestre baleeiro fizeram os diálogos como se representassem uma incoerente obra dramática para mim e para o capitão Jack, sentados do lado oposto da mesa. Diálogos? Deveria dizer os monólogos do capitão Ed.

«Que ninguém diga de mim iguais palavras às ouvidas pelo infeliz capitão que nunca bebia água, vítima da hidrofobia que o mantinha em terra. A mim do que beber jamais ousaram me dizer! Desviar-me do meu intento? O caminho da minha resolução é feito com trilhos de ferro, onde a minha alma está encarrilhada.»

O volume da voz do mestre baleeiro aumentou à proporção do álcool ingerido ao longo da noite, enquanto o faroleiro enrolava mais e mais os raros monossílabos dentro de si próprio. Como um espetáculo de cabaré, os temas foram rodando com interpretações dramáticas do mestre a relatar episódios centrados na exibição da sua autoridade e da sua coragem.

Depois de uma longa pausa em que pensei que o homem finalmente se iria silenciar de exaustão, levantou-se e olhou-me fixamente como se tivesse ouvido os meus pensamentos, todas as rugas faciais endurecidas como linhas metálicas retesadas no esforço de sustentarem as diferentes partes do rosto.

«Eu sei, menina, os pensamentos que revolvem na sua mente. Reconheço-os no desprezo desmaiado nas faces das gerações desta vossa era do digital. Não ganham alma esses pensamentos porque vos falta o sopro que animava o peito das gentes do meu tempo, mas estou vigilante a quem me lançar o primeiro insulto! O vosso olhar higienizado filtra a luz do mundo natural e, vendados pelo jorro brilhante dos cristais líquidos, sois criaturas cegas desde a nascença, ignorantes de que os vossos objetos visíveis são máscaras feitas de algoritmos e simples impulsos binários. Eu conheço essa vossa repulsa pelo passado cruento e sanguinário. Tenho eu sangue nas minhas mãos que tornariam o mar vermelho tentasse eu lavá-las? O sangue nas minhas mãos alimentou muitas bocas esfomeadas e depois delas muitos cães as lamberam esganados. Antes do vosso petróleo e dos vossos plásticos, que matam mais nos oceanos do que vos querem contar, estava nas baleias o óleo que ungia as rodas da indústria e que impedia a máquina do mundo de encravar. E no caso das suas antepassadas, era da baleia que vinha o óleo para alumiar as vossas noites mais solitárias, o âmbar para adocicar as vossas peles, as cerdas para sustentar os vossos corpos em elegantes corpetes apertados. Havia morte, sim, porque era de morte ou de vida que se tratava. Quantas vezes os homens largaram as cordas que desciam à terra um companheiro morto no mar para agarrarem os cabos do bote ao grito de baleia avistada. A mortandade veio de outras paragens, da terra da ganância e da industrialização, da miragem seguida por muitos dos açorianos crentes no sonho americano, um país tão capaz de autofagia como o gigante chinês e o titã russo. A caça à baleia tornou-se a mais blasfema das blasfémias porque a avidez humana armou fábricas assassinas com arpões certeiros espalhadas pelo mar fora. A natureza humana é antinatural e o nosso bafo é feito de pesar pois sabemos ser nosso o advento da destruição. Não podemos parar e só quando formos extintos haverá um novo equilíbrio no nosso mundo. Oh, pesada é a cabeça coroada com a visão da nossa atroz humanidade pois sabe que não consegue governar o maleficente coração dos homens! Deixai-me sós agora, sinto o palato farto do sabor desta conversa!»

E retirou-se com o eco do martelar da perna a apagar-se ao longe pela porta aberta. Eu e o capitão deixámos o faroleiro a roncar o álcool e chamámos o táxi para regressar a casa.

«É uma personagem, o capitão Eduardo. Conta-se muitas histórias, mas toda a gente diz que ele ficou apanhado quando perdeu a perna.», disse o motorista.

«Foi algum acidente na baleação?»

«Não, foi algo menos trágico. Assustou-se com um peixe-lua quando estava sozinho à pesca e caiu ao mar com um cabo enrolado na perna.», explicou.

E terminámos a noite a ouvir a história da torre Nakatomi. Conto-ta noutra altura, tenho de descansar, mal consigo manter os olhos abertos.

 

 

Santa Maria, Açores

Santa Maria é uma das nove ilhas do arquipélago dos Açores e situa-se no extremo sudeste do conjunto, com um clima menos atlântico e mais seco, sendo, por isso, chamada de a ilha do Sol. As atividades relacionadas com o mar são o principal ponto de atração para quem a visita, com destaque para a observação de baleias azuis, baleias-jubarte e até mesmo cachalotes.

Capitão Ahab

O sentimento de vingança não promove uma boa digestão e isso dá para ver na cara do Capitão Ahab. A um passado feito de dor, juntou um desprezo pela humanidade e pela tecnologia. A figura trágica e obcecada de Moby Dick é uma das personagens mais icónicas da literatura.

Peixe-lua

Um dos peixes mais elusivos do mundo, o peixe-lua é também o mais pesado e maior peixe ósseo do mundo. Foi filmado ao largo da ilha de Santa Maria pelo mergulhador e fotógrafo Miguel Pereira. O nome desta espécie advém de só ser observado raramente quando se aproxima da superfície do mar à noite.

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.