Não sei que espécie de feitiço sofri ou se alguém a bordo me deitou algo na comida, o certo é que dormi profundamente logo a seguir à última garfada do jantar. Acordei quando já estávamos a fazer a aproximação à ilha, a pouco mais de três milhas de distância. Mal tinha acabado de despregar as ramelas dos olhos com a ponta dos dedos vi imediatamente que tínhamos chegado a um enorme calhau batido pelas vagas do Atlântico no meio de nenhures…
Qualquer resquício de sono liquefez-se corpo abaixo ao nos aproximarmos do Porto da Casa, nome dado ao ancoradouro da ilha do Corvo, encaixado no recanto mais doméstico da ilha, aos pés da vila, mas insuficientemente resguardado para proteger uma atracagem. Aos nos aproximarmos, parecia que as vagas ignoravam o comprimento reduzido da muralha e tomavam conta de toda a costa. Imagino que em dias de maior vendaval, com as vagas a empurrarem uma embarcação, seja possível entrar pelo Porto da Casa adentro e aterrar no aeroporto, a cerca de cem metros de distância. No final, os receios eram infundamentados e a ancoragem foi rápida e eficientemente realizada. Em dois tempos, eu, o capitão e o piloto lunático estávamos de pés assentes no molhe.
A ilha aparenta não ter uma única árvore e está coberta por uma erva tão macia que podíamos acreditar ser possível rebolar encosta abaixo, escondidos sob as mantas vegetais, sem um único “ai”. Há uma só encosta, onde foi plantada a Vila do Corvo, um pequeno labirinto de casas térreas e ruelas estreitas; o resto da ilha foi escarpado por um rude cutileiro que não deixou uma única fajã, apenas pequenos amontoados dos escombros do seu trabalho de corte da pedra a formarem recantos a que só com generosidade se poderá chamar praias recônditas.
«Vamos aos Metralhas, precisamos de uma refeição de boas-vindas», instruiu-nos.
O capitão guiou-nos rua acima e, depois de uma viragem à direita e de outra à esquerda, estávamos no outro lado da vila, defronte de um snack-bar que, à primeira vista, parecia não ter grande história para contar.
A entrada no espaço criou-me um u certo desnorte, desses que não vêm do cansaço ou da desorientação geográfica, mas da colisão entre a expectativa e a realidade. Aqui estávamos no extremo mais remoto da Europa ocidental, uma nesga de terra solta a meio caminho entre continentes, e em lugar de uma taberna rústica preservada da erosão dos tempos, encontrei um snack-bar indistinguível de tantos outros que povoam as pequenas localidades por Portugal fora.
Passámos junto da armação de alumínio a delimitar uma esplanada para manter o clima agreste da parte exterior com o habitual mobiliário de promoção oferecido pelos fornecedores de bebidas. No interior, os tradicionais eletrodomésticos dos pequenos cafés e as práticas mesas de madeira. Isto não é um sítio típico de turistas e duvido que haja muita gente de fora a visitar este local.
A entrada no espaço provocou-me um certo desnorte, desses que não vêm do cansaço ou da desorientação geográfica, mas da colisão entre a expectativa e a realidade. Estávamos no Corvo — a mais remota ilha dos Açores, o extremo habitado mais ocidental da Europa, uma nesga de terra solta a meio caminho entre continentes. E no entanto, em vez de uma taberna rude e resistente, como se espera encontrar onde o tempo parece parar, deparámo-nos com um snack-bar indistinguível de tantos outros espalhados por Portugal fora.
A esplanada triangular, delimitada por um murete na hipotenusa e dois grande toldos dispostos junto aos catetos, exibia o tradicional mobiliário promocional — cadeiras e mesas plásticas estampadas com marcas de refrigerantes, Lá dentro, o mesmo padrão familiar: balcão de fórmica, frigoríficos com vitrines, a máquina de café a tossir vapor e as mesas de madeira prática, sem cerimónias.
Não havia ali qualquer sinal de folclore turístico, nem se percebia intenção de o criar. Não era um espaço que se oferecesse ao forasteiro como quem exibe postais ou recordações. Era o que era: um sítio para os locais beberem o seu café ou galão, ponto de encontro para conversas em torno do café e refeições de peixe grelhado e frutos do mar para quem estivesse com vontade de espreguiçar o apetite. A estranheza maior, talvez, era precisamente essa: a normalidade. Como se a ilha, em vez de se vestir de exceção, decidisse apresentar-se na sua forma mais quotidiana — desinteressada, funcional, indiferente ao exotismo que os mapas lhe atribuem. E, de certa forma, essa indiferença era mais misteriosa do que qualquer cenário pitoresco.
«Ninguém mete aqui os cotos», disse uma voz na única mesa ocupada do café. Por instantes fiquei sem reação, boca semiaberta a pensar que tinha pensado em voz alta sem querer, até perceber que o homem se dirigia aos outros dois companheiros com ele sentados, olhos indiferentes à tirada, concentrados no jogo. Na volta, são os Irmãos Metralha que dão nome ao snack-bar.
«Joga. Vais ver que ela vem, se calhar nem acabamos este jogo», disse um dos outros com ar de nórdico, demasiado alto para a mesa, a pele encarniçada pelo sol.
«Minha», rematou com brusquidão o terceiro.
«Estás com muita sorte, Gabiru», observou o nórdico, dirigindo-se à figura de cabeça pelada de costas para o canto da sala.
«Devias guardá-la para mais logo, vais precisar quando jogarmos com ela», disse o primeiro, trajado fora de moda com o peso negro do luto permanente que os romani abraçam.
«Sempre a bardar, Bardão. Deixa-a vir», respondeu o Gabiru.
«Vives sempre nos sonhos. O nosso maior sonho é não perder essa partida, é não morrer», atalhou o homem de negro.
«Eu ganho-lhe», retorquiu mais alto o nórdico.
«Tu é mais xadrez. E talvez sueca. Agora, a bisca…»
«Regras diferentes, o mesmo jogo»
«Pois, talvez. És como o Gabiru, alienaste-te do mundo, vieste para esta curva do vento à procura de conhecimento, a ver se encontravas o transcendente na desolação. E estavas a contar com a ajuda daquele ermita metido lá em cima no meio do vazio do nada. Pois, encontraste o nada, a ausência de sentido, ou melhor, que o sentido da vida é a morte.»
«Diz o roto ao nu», interrompeu o Gabiru.
Sentámo-nos na mesa ao lado e o nosso movimento puxou a atenção dos jogadores da bisca.
O homem de negro olhou-nos fixamente e prosseguiu como se o café se tivesse tornado um palco improvisado de um drama em continua representação.
«Saiba a menina que aqui, nesta ilha, acabam as palavras, aqui acaba o mundo que conhecemos; aqui, neste tremendo isolamento, onde a vida artificial está reduzida ao mínimo, só as coisas eternas perduram. Não se pode fugir à monotonia da existência, à solidão que nos cerca, à sólida arquitetura dos montes que apertam e esmagam.».
O homem prosseguiu, pondo em mim os olhos de peixe das solitárias profundezas oceânicas, o bigode a esconder uma boca que se adivinhava melancólica. «Neste ermo, os homens suportam uma vida dura e monótona, fazendo todos os dias os mesmos gestos e repetindo sempre a mesma meia dúzia de palavras até à morte.» Alçou a orelha direita para o ar e sussurrou. «Ouço o Tempo a rondar…»
«É o trator do Chico. Anda, joga», disse o nórdico. «A ver se acabamos o jogo antes que ela chegue. Essa é que é a partida que interessa.»
«O tempo sempre igual. Um minuto, um ano, um século. E esta humidade, o musgo…»
«Para de lamuriar, ao menos ainda não perdeste o jogo. O outro quinou lá no café da Samarra», suspirou o nórdico.
«De muito te serviu fugires para aqui. Estamos todos à espera da morte. A existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos e aqui estamos, enterrados em convenções, usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos, jogamos as mesmas cartas, fazemos as mesmas vazas…»
“Pior que sofrer – é não sofrer – é nunca mais sentir. É ter as órbitas vazias voltadas para o céu e nelas não se refletir a luz das estrelas», interrompeu o Gabiru.
“O pior mesmo é ir para a cova com a boca a saber a vulgaridade e a pó», concluiu o homem de negro. E pediu em voz alta «Venham lá mais três minis para limpar a garganta».
Com as minis dos jogadores chegou a nossa comida.
«Um delicioso hamburger vegetariano numa terra de carne e leite.», observou o homem do bigode triste. «Acho que também tenho apetite. Venha uma dose de húmus para mim, por favor.», pediu em voz alta.
Ficaram em silêncio o resto do tempo, debruçados no jogo de bisca que não parecia chegar ao fim, as cartas do baralho repostas num monte para uma partida de vazas repetidas pelos jogadores, no olhar a tristeza da premonição de que todos iriam perder no final.
Deixámos o café satisfeitos com a comida, mas algo deprimidos com a conversa do trio da bisca. A ilha é, de facto, um ermo no oceano, interessante para quem procura o isolamento.
«Fazemos uma visita ao ermita amanhã. Acho que todos gostaríamos de descansar um pouco o corpo.», disse o capitão.
«Eu sigo já para o Caldeirão, posso descansar lá», atalhou o piloto.
Despedimo-nos e descemos até ao centro da vila, para as acomodações que nos esperavam e onde pude escrever e enviar-te esta mensagem. Tenho curiosidade em conhecer este ermita que se refugiou num local tão ermo e aonde chegam visitantes de propósito para o interpelar com questões existenciais.
R. Bardão
Jornalista do continente, chegou à ilha para iniciar uma visita ao arquipélago dos Açores -pretendia escrever um livro de viagens precursor chamado As ilhas Desconhecidas – e nunca mais de lá saiu.
Covil de homens procurados
A canção da banda The Last Internationale veio à minha mente ao ver os homens a jogarem cartas no café e a pensar noutros que se refugiam na ilha do Corvo, em fuga de caçadores de recompensas ou talvez deles próprios.