15. Um contrato para a vida

Jun 1, 2025

Desta vez, a preparação da partida foi feita num ritmo tranquilo, sem a pressão da maré ou das horas de chegada a cumprir. Isso não significou, porém, que o Capitão ficasse a roncar até tarde. Levantou-se com o nascer do sol e começou a ultimar os preparativos para a viagem, que já tinham sido iniciados uns dias antes. Não era para menos: uma travessia do Atlântico Norte, possivelmente durante 15 dias ou mais, com 5 pessoas a bordo, tinha de ter tudo planeado ao mais ínfimo detalhe.

Quando cheguei ao cais, boa parte do trabalho já tinha sido adiado e ajudei só na conclusão das últimas tarefas. Depois, fomos aos Metralhas para o último almoço em terra das próximas semanas, e rever a lista dos preparativos, da palamenta e dos mantimentos. Passámos pelos nossos aposentos para um derradeiro duche sem balanços, uma troca de roupa e a recolha dos restantes artigos pessoais. Na caminhada de regresso ao cais, não resisti a inquirir sobre o perfil dos conselheiros políticos que teríamos de aturar no mar alto.

«São três vultos polémicos, cada um a bordo por razões muito diferentes.”, disse o capitão, sem tornar explícita, contudo, a motivação de cada um deles.

Quando chegámos ao cais, o primeiro dos tripulantes estava também a chegar.

«Pontualidade britânica», murmurou o Capitão, sorrindo.

Vi-o aproximar-se do Nómada com passo firme e elegante, mala de cabedal escuro numa mão, um livro na outra, provavelmente o entretenimento de quem prefere chegar primeiro e esperar pelos outros. Não tinha pressa. Trazia um blazer de linho branco e calças cor de areia, sapatos náuticos de couro, uma camisa azul-pálida com botões de madrepérola e um lenço de bolso que parecia ter sido escolhido à luz dourada de Veneza. O cabelo castanho-claro perfeitamente penteado, um leve bronzeado britânico — o tipo que se adquire em bibliotecas soalheiras e não em praias — e uns óculos escuros redondos de aros finos assentes num nariz que parecia ter sido moldado por escultores italianos do século XVII — aristocrático, sem ser vaidoso.

O Capitão inclinou-se para mim e murmurou.

«Johnny Locke», disse em voz baixa, num tom meio conspirativo. «Conheceu o Huygens num retiro sobre estados alternativos de consciência artificial em Goa.» Claro, pensei com um sorriso que não escapou ao Capitão. «É um académico especialista em percepção, mas acabou por se meter em negócios de neuropublicidade. Agora divide-se entre conferências TED e consultorias sobre estratégias cognitivas para governos.»

Assenti com um “pois…” prudente, sem desviar os olhos daquele nariz que parecia ter sido esculpido para liderar discussões em auditórios climatizados. Mesmo à distância, percebia-se: era daqueles que entram numa sala e fazem com que os espelhos se endireitem.

Locke subiu a bordo com a elegância de quem aprendeu a navegar em iates de madeira no sul de França. Estendeu a mão ao Capitão, depois a mim, com um sorriso polido.

«O Nómada… mais espaçoso do que me tinham dito. E com excelente gosto na disposição dos cabos.»

Ainda estávamos a trocar as primeiras frases, quando ouvimos ao longe um grito alegre.

«Ó-oi!!»

Outro dos tripulantes chegava, um homem alto de braço erguido a acenar ao longe, de passo elástico com um ritmo descontraído, saco de lona atirado ao ombro e uma mochila de carga leve às costas. Vinha bronzeado, com o cabelo comprido apanhado num coque improvisado, calções de caqui, t-shirt branca justa, ténis sujos de pó e sol e óculos de sol espelhados, com um ar geral de quem tanto podia estar a chegar de uma travessia dos Andes como de um festival de verão em Montreux.

«Jay Jay Russo», anunciou o Capitão, com um meio sorriso. «Teve a sua fase musical nos anos 90. Reza a lenda que escreveu aquela balada que passava em todo o lado no verão da Expo. Mais tarde, reinventou-se como instrutor de ski para madames abastadas em retiros espirituais nos Alpes. Um verdadeiro dândi pós-moderno, com talento para seduzir e desaparecer a tempo. Ultimamente dá workshops com títulos ambíguos como “Corpo, Liberdade e Velocidade” ou “Poética do Salto”.

O Russo aproximou-se com naturalidade, como se já fosse da casa, pousou o saco no pontão com um gesto largo e acenou. Cumprimentou o Capitão com um toque de punho e virou-se para mim com um aceno educado e caloroso — daqueles que são difíceis de recusar.

«Jay Jay Russo, prazer. A viagem foi tranquila, tirando um grupo de adolescentes no ferry que me confundiu com um DJ escandinavo. Não tive coragem de os desmentir.», riu-se.

Era fácil gostar dele, mas igualmente fácil imaginar que esse charme solarengo pudesse tornar-se, com o tempo, um pouco ensurdecedor. Tinha o porte de quem está sempre prestes a propor um mergulho, uma ideia radical ou um sumo detox.

O Johnny Locke emergiu do interior no  convés com a elegância de quem sabe mover-se num barco à vela. Deram um abraço curto, mas genuíno.

«Ainda andas a treinar milionárias em Saint-Moritz?», perguntou o Johnny, divertido.

«Deixei-me disso. Agora só aceito clientes que me façam rir.», respondeu o Russo. «Estamos todos? Fui o último a chegar?», perguntou, com um ligeiro ar de presunção.

«Só falta um, o Hobbes.», informou o Capitão.

«O Bad Tom? Esse ainda está vivo?»

«Mais vivo do que nunca. Vem aí de motorizada.», apontou o Johnny.

«Estás a brincar!»

Ouviu-se em crescendo um zumbido metálico e agudo, qualquer coisa entre uma máquina de costura nervosa e um berbequim a carburar mal. Do lado da entrada do cais vinha uma motorizada azul-celeste, uma cinquenta antiga, daquelas com assento largo e escape a tossir, conduzida com insuspeitada gravidade por motard vestido de negro que parecia ser um Kalkito aplicado por engano fora da Harley a que pertencia. A pequena máquina chegou ao fim do pontão com um último estertor heróico, parando junto ao Nómada como se tivesse atravessado meia Europa e não apenas um troço de estrada municipal com subidas suaves e cheiro a peixe seco.

O homem desmontou com solenidade, como se estivesse a chegar ao seu próprio funeral. Vinha de blusão de cabedal preto, puído nas mangas, com um crânio flamejante bordado nas costas e a palavra “Leviathan” escrita em letras góticas. Calças de ganga coçadas, capacete integral escuro com autocolantes desbotados — “Liberdade ou nada” e “O Estado és tu (sem saberes)” — e uma postura de veterano de estrada que estava deslocada naquela motoreta. Tirou o capacete com a lentidão ritual de um cavaleiro medieval e revelou um rosto sisudo com cabelos grisalhos sobre os ombros a começarem a rarear no centro, barba com dois dias de desalento, sobrancelhas cerradas e olhos de quem já leu demasiado e dormiu pouco.

«Tom!» O Russo saltou ágil borda fora e dirigiu-se de braços abertos e um sorriso rasgado. «Ainda andas de volta daquele texto onde dizes que a esperança morreu num parque de campismo na Eslovénia?»

«Corrigi para Montenegro.», respondeu o Tom, impassível. «Ficava mais escuro, mais simbólico.»

Riram-se, deram um abraço de velhos cúmplices. A bordo do Nómada, de mãos nos bolsos, o Johnny Locke acenou apenas com a cabeça, como quem mede, em silêncio, o grau de insanidade que se estava a instalar.

«Johnny.», disse o Tom, num tom neutro.

«Tom.», respondeu o outro, no mesmo registo.

«E a motoreta?», perguntei.

O Hobbes olhou para mim como se não tivesse dado conta da minha existência.

«Pedi emprestada a um pescador local», disse, enquanto soltava a mochila atada em desequilíbrio no final do assento, «em troca de meia garrafa de grapa artesanal e de um ensaio manuscrito sobre o colapso da confiança institucional nos arquipélagos.»

Riu-se da sua própria piada.

Ia já meter um pé no convés quando o Capitão levantou o braço, seco.

«Nem botas nem saltos altos no Nómada. Madeira e sola pesada não combinam.»

O Tom ficou parado por um momento. Depois sorriu — um sorriso cansado, mas genuíno — e sentou-se no pontão para descalçar as botas. Fê-lo com a lentidão digna de um ritual: primeiro uma, depois a outra, deixando ver umas meias grossas às riscas cinzentas, com um buraco já a espreitar num dos calcanhares.

Enquanto os convidados arrumavam a sua tralha no interior e punham a conversa em dia, eu e o Capitão preparámos o Nómada para zarpar.

«Está completo o elenco. E que elenco!», exclamou em surdina o Capitão. «Todos eles foram precursores político que tem influenciado importantes decisores mundiais, nada comparado com aquelas nódoas de poluções intelectuais apelidadas de “comentadores políticos” que vemos na televisão. Três distintos pensadores –– distintos nos dois sentidos, dado que um é realista, outro é reformista e o último é idealista – metidos na mesma jaula navegante pode dar uma epifania.»

«Ou resultar num naufrágio.», gracejei.

E não demorou muito a estalar a bomba: mal os esfíncteres e os corações deixaram de estar apertadinhos com a aventurosa saída do Porto da Casa – hás de ver o vídeo que te enviei; às vezes, o Porto da Casa nada tem de doméstico –, começaram logo a soar os primeiros batuques de discórdia.

«Tudo é mecânico e causal, para cada efeito há uma causa. Os princípios das ciências naturais devem ser aplicados à ciência do homem e da sociedade. A materialidade das coisas é a verdade. São as sensações que causam as ideias, elas não descem dos Alpes a saltitar pela natureza atrás da Mary Poppins a solfejar em tirolês.»

A voz do “Bad Tom” começava a revelar uma certa impaciência. A partir de um mero comentário sobre a natureza dos corvinos tinha começado um debate de risco mortal sobre a natureza humana.

«Diz o homem da mota. Pareces um argumentista norte-americano dessas séries violentas, em que toda a gente tem uma natureza má.», contrapôs o Russo num tom trocista.

«As motas explicam mais do que pensas. A base do equilíbrio das motas é o movimento e aquilo que anima os motores de quem as conduz são o desejo e a paixão, guiados pela procura do prazer e a esquiva à dor. Assim somos todos nós nas nossas vidas. Tal como o verdadeiro motard, no nosso estado natural, sem lei nem organização política, nós somos individualistas e não tiramos verdadeiramente prazer da companhia uns dos outros. Pelo contrário, vivemos em discórdia e competimos pelos bens, pela segurança e pela reputação. No estado natural, o homem vive um constante temor da morte violenta e este medo torna-se a emoção mais forte. Sem uma autoridade política, a vida do homem é solitária…»

«Solitária, pobre, sórdida, bruta e curta.», completaram os outros em coro. «Nós conhecemos bem o anúncio», acrescentou o Locke, rindo.

«Se conhecem, percebem então porque é preciso uma forte autoridade que impeça o homem de se tornar um filho da anarquia.»

«Filhos da anarquia é o que não faltam por aí.», gracejou o Russo.

O tom de voz do Tom baixou a acompanhar o olhar a baixar-se para os pés.

«Nas minhas viagens pela Europa, eu ouvi em primeira mão, na Grécia, o relato feito pelo Tucídides sobre a guerra fratricida que os locais sofreram e não há ninguém que deseje passar por tal.»

Com um movimento de abnegação dos ombros, deu uma última passa no cigarro e preparava-se para atirar a beata borda fora.

«Na, na, na.», interrompeu o capitão. «A beata vai para a latinha das cinzas. A vida pode ser solitária, pobre, sórdida, bruta e curta, mas aqui no oceano não é, de certeza, poluidora.»

«Eu não costumo…»

«Claro que não.», anuiu o capitão.

«É nestas coisas, Tom, que vemos como tu, felizmente, tens uma natureza diferente daquela que apregoas.», observou o Russo, dando uma leve palmada no joelho do colega. «O estado natural do homem é a comunhão com a natureza e isso vê-se nas crianças. A nossa natureza é benigna e somos movidos pelo amour de soi com vista à nossa preservação e pela pitié, a compaixão e repulsa pelo sofrimento, não só do nosso, mas também do de outras criaturas.»

«Não foi isso que disseste sobre os pequenos tiranos de Chambéry e de Lyon, que querias benignamente atirar do topo da casa.», atalhou o Locke.

«Podemos falar sobre a educação dos petizes noutra altura, Johnny, e muito tenho a dizer sobre as tuas ideias. Mas agora, estamos a falar da natureza humana e da forma como a sociedade a corrompe. Esse é que é, meus caros, o problema, porque a competição pelos bens e pela honra de que o Tom fala é uma corrupção provocada pela sociedade na natureza humana. Só fora da condição natural é que o homem mede as suas necessidades à medida da dos outros homens. A propriedade privada e a congregação social humana não são naturais, como muitos querem fazer crer.»

«Aí vem o discurso revolucionário…», suspirou o Locke, fazendo o Russo eriçar o pescoço.

«Amigo, não faças essa cara de santo, até porque tu foste evocado numa revolução que mudou muita coisa na configuração geopolítica atual. Podemos falar de propriedade privada noutra altura, mas há uma coisa que a sociedade fez que foi transformar o instinto benigno de preservação numa vaidade, o amour-propre, esse sentimento de que temos de ser mais do que os outros.»

«Vá lá, não sejas radical.»

As veias no pescoço do Russo começaram a ficar visíveis.

«Achas? Já viste o que se passa nas redes sociais? É tudo superficial e pouco verídico, o Facebook bem que podia ser o Fakebook. Entrar nas redes sociais é meter o pé num lodaçal de vaidades que mostra o quanto abjetos nos tornámos, sem ousarmos confrontarmo-nos, no meio de tanta filosofia, benevolência, delicadeza e de tão sublimes códigos de moralidade, com o facto de que nada temos para mostrar exceto uma frívola e enganadora aparência, honra sem virtude, razão sem sabedoria, prazer sem felicidade!»

Fiquei espantada com o fôlego de uma frase tão longa dita numa só baforada. A alteração de humor era visível em toda a expressão do Russo. Ninguém quis dizer nada a ver se amainavam os ânimos.

O Locke esticou-se para alcançar uma garrafa de um grogue qualquer, deu um trago e passou-a ao Russo.

«Eu não sei como é que vocês conseguem adormecer com as vossas ideias, eu sentir-me-ia aterrorizado ou revoltado ao ponto de ter insónias. Não quero estar a contra-argumentar, mas um estado natural baseado na razão assente na colaboração humana parece-me mais próximo da realidade.»

«Um clube de gentlemen», troçou o Bad Tom, depois de um longo trago.

«Sim, não há mal nenhum nisso.»

A discussão esmoreceu e em lugar de se atirarem à garganta uns dos outros, atiraram-se ao gargalo da garrafa. Enquanto estou a escrever, eles estão a cantar – grasnar, berrar, bramir – e não tardará muito estarão a regurgitar…

O que vale é que o mar está um pouco mais calmo e é fácil uma pessoa inclinar-se borda fora e não sujar o convés.

J. J. Russo

Um fervoroso suíço, defensor irredutível da sua Genebra natal. Um homem de grandes paixões, tornadas públicas nas suas autobiografias, parece viver sempre num de dois extremos, entre o amor e o ódio.

Johnny Locky

A personificação da elegância e da perspicácia de um “english gentleman” com um humor corrosivo. Antes de se tornar um guru político com imenso sucesso nos Estados Unidos, Johnny Locky deu cartas na área do pensamento científico

Bad Tom Hobbes

Quando o grogue o deixa mais solto, relaxa ao ponto de contar histórias como a do seu nascimento prematuro quando a mãe se acagaçou com a horda de adeptos do Barcelona que espalharam o caos em Inglaterra durante a final da Taça dos Campeões Europeus. Sóbrio, torna-se defensivo e até arrogante.

Esplanada junto à biblioteca

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.