Desculpa a nova interrupção, era o administrador do condomínio, veio deixar-me o regulamento do prédio – um texto denso e repleto de preceitos menores em papel. Só mesmo o típico apreço das formalidades exibido pelos titulares de cargos menores explica a sua insistência em me entregar um exemplar pessoalmente, acompanhado de longas platitudes.
Estou a considerar deixar a cidade e precisarei de um inquilino responsável a tomar conta do apartamento por uma longa temporada. Tudo isto parece muito súbito, talvez até maníaco, mas as razões para o meu desassossego estão ligadas à história que me esforço por te narrar com fidelidade.
Como deves imaginar, acabei por ir com o casal francês ao “La Bohème”. Não te sei explicar porquê, talvez aquela espécie de fascinação que os espíritos livres exercem sobre as almas cansadas da rotina ou talvez a vontade de um concerto de jazz. Como dizia a minha avó Maria, o trabalho é cavalo manso que não foge — e lá fomos. Num pulo saímos da esplanada, passámos o túnel da rua dos Mareantes e virámos à esquerda numa travessa medieval estreita de onde mal se avistam as estrelas.
Conheço o “La Bohème” há imensos anos – toda a gente em Setúbal conhece, é talvez o bar mais antigo da cidade. Porém, fiquei surpresa quando, à chegada, o casal fez um subtil sinal com a mão e um homem esguio de bigode ralo e colete às riscas, que nunca lá tinha visto antes, afastou com um movimento discreto uma pesada cortina de veludo escuro. Agachámos ligeiramente os ombros e entrámos clandestinos por uma porta baixa. Do outro lado, seguimos por um longo e estreito corredor, o ar carregado de fumos e notas de música que se adensavam como se penetrássemos no coração de um covil.
Ainda não consegui perceber em que lado do edifício cabe um espaço como aquele: um salão com um bar de mogno gasto à esquerda e no extremo oposto um pequeno estrado de madeira sobressaído do soalho com uma bateria e outros instrumentos. As mesas redondas estão iluminadas em tons amarelo e vermelho por candeeiros de teto Tiffany e cercadas de cadeiras com estofos bordeaux puídos no rebordo, tudo rodeado por uma ornamentação excessiva de espelhos em cornucópias, cartazes de concertos de jazz e pinturas escurecidas pelo fumo que mal deixavam entrever as paredes em papel pardo onde não se vislumbra uma única janela.
O salão fervilhava. Conversas animadas ecoavam em francês; havia quem se encostasse às paredes, copo na mão, quem se curvasse para ouvir melhor uma confidência, quem dançasse de forma preguiçosa, embalado pela música invisível. Todas as mesas estavam ocupadas e não conseguíamos encontrar onde nos sentarmos.
«Ici!», ouvi gritar e identifiquei um homem a acenar. Só então me apercebi de que não sabia os nomes dos meus companheiros.
Cadeiras foram arrastadas para nos juntarmos a três novos parceiros, um homem elegante de fato escuro e camisa branca desabotoada no topo, outro um pouco mais baixo de cara redonda e cabelo escuro e uma mulher de perfil grego e longos cabelos negros com olhos intensos a perscrutar em redor.
O homem de fato cedeu o lugar à mulher de turbante junto do outro homem.
«Fica com o meu lugar. É a minha vez de ir tocar.»
«Onde está o Miles?», perguntou o meu guia, ainda em pé.
«A milhas.», suspirou a mulher de perfil grego.
Mal me tinha sentado, um trio de jazz começou a atuar com o homem de fato de preto no trompete.
«Ele é bom e escreve bem também, mas ninguém lhe dá crédito», gritou o homem de óculos grossos, debruçando-se sobre o meu ombro. «Faz certificações como engenheiro e, contudo, ninguém lhe certifica o trabalho». Riu-se da sua piada.
«Mas tu certificaste-lhe a mulher», disse a mulher de perfil grego com malícia divertida.
«Ex-mulher, Juliette. Ex. Se vamos falar de certificações, para comparar a lista das tuas e das minhas precisamos de mais do que esta mesa»
«Je sais… Parlez moi d’amour.»
Riram-se ambos e a mulher sorriu para mim, começando a cantar ao som de uma nova canção iniciada pelo trio.
«Não quer dançar?», convidou-me a mulher de turbante. Outros pares formavam-se também nesse momento, criando um ambiente de celebração íntima. Anuí, ainda aturdida com o ambiente, a pensar como é se dançaria aquele ritmo.
Ela pousou suavemente uma mão na minha cintura e colocou a outra no meu ombro.
«Não se preocupe, siga as minhas ancas.»
Riu-se para mim e dançámos sob o olhar atento dos dois homens.
«Não lhes pode ligar, eles são homens. Não nasceram assim, mas foram construídos desta maneira pela sociedade.»
«Seguem o projeto pessoal geral?» perguntei, a tentar o humor. Ela sorriu.
«A existência não acontece isolada de tudo o resto. É difícil fugir ao olhar dos outros, que nos transpõe de voyeurs para objetos. E você sabe bem como nós somos tornadas objetos por certos olhares»
Rodou ligeiramente os nossos corpos e fez um sinal com a cabeça em direção ao homem de óculos grossos.
«Ele diz a brincar que os outros são o inferno. Em parte, são: os vizinhos de mesa ou de casa, os colegas de trabalho, os desconhecidos nos transportes… Contudo, existimos no mundo com os outros e não podemos, nem devemos evitá-los. Os parâmetros da nossa liberdade individual exigem a liberdade do outro. Não podemos impor a nossa liberdade aos outros.»
Parou por breves instantes a avaliar a minha face, fez um enorme sorriso e reencaminhou-me nos ritmos da dança.
«Nós vivemos diferentes desigualdade e uma delas é entre nós e eles. Mesmo quando nos é permitida uma certa equidade, o preço que pagamos é termos de nos tornar neles e imitar o seu comportamento. Igualdade não significa sermos o mesmo e muitas mulheres proeminentes da vida pública ainda cometem esse erro, arrastando outras neste equívoco.»
Aproximou a sua cabeça, escondendo na minha face a sua boca e segredou-me ao ouvido com um sopro quente.
«On ne naît pas femme: on le devient. A construção social da feminilidade serve apenas os propósitos de estruturas patriarcais para nos depreciarem e nos fazerem o outro, o segundo, o que vem atrás e arruma e limpa ou que fica atrás a preparar o regresso. Não um agente de ação, mas um objeto privado dessa liberdade de agir, de existir.»
Afastou-se ligeiramente, inclinando lentamente a cabeça para um e outro lado ao ritmo da música, segurou-me pela mão erguida como se fosse fazer-me rodar sobre mim mesma e aproximou-se de novo.
«Eles procuram oprimir-nos na nossa corporalidade, fazer-nos objetos com funções reprodutivas, maternais, domésticas, sexuais; querem privar-nos daquilo que podemos fazer com os nossos corpos.»
A mão assente na minha anca subiu ao meu ombro junto ao meu corpo, roçando casualmente o antebraço no meu seio e despertando o mamilo. Voltou a segredar-me ao ouvido.
«Olhe para eles e repare como nos observam, como se deleitam a objetificar a nossa interação, o puro prazer do voyeurismo. É só nestas alturas, minha querida, é que nos deixam explorar os nossos corpos, mas sempre como objetos do seu olhar.»
A música terminou, mas mantivemo-nos unidas como se a nossa dança continuasse.
«Muitas de nós vivem felizes porque não têm de tomar decisões e são mantidas no mundo privilegiado das crianças, sem a angústia que a existência nos provoca. Contudo, não existem verdadeiramente, não têm autonomia e as pequenas “liberdades” que experienciam são um recreio para entreter crianças e deixá-las fazer o que querem num espaço controlado. Não é algo que elas escolham, é algo que lhes é imposto»
Afastou o seu corpo do meu, fez um enorme sorriso e enlaçou-me o braço, encaminhando-me de regresso à mesa.
«Acho que já falei o suficiente para uma noite. Vamos, temos bebidas à espera.»
O homem de fato preto juntou-se.
«Muito bem, Vernon. Deixaste-nos encantado.», felicitou a mulher de perfil grego.
«Um elogio de uma chanteuse como a Juliette deve encher-te o coração»
«Ah, já mo arrancaram. Contudo, o que seja que ficou no seu lugar recebe o seu elogio com gratidão. Talvez um dia possas dar voz a uma das minhas canções.»
«Certainement. Je suis pas snob para te cantar, Sibor.»
Risos.
«Ele gosta de brincar com os nomes e nós fazemos-lhe o mesmo», explicou-me a mulher de turbante.
Uma fonte de absinto foi colocada na nossa mesa, seguida de copos, colheres e uma taça com cubos de açúcar. Em menos de nada, o ambiente do salão tinha mudado, o tom pastel e avermelhado deslizara para um verde amarelado e a minha cabeça começou a rodar.
«Cuidado para não cair no absismo.»
Risos.
«Antes isso que o absintismo.»
Novos risos. O humor circulava entre eles como num jeu de paume em círculo.
O homem da cara redonda levantou-se e despediu-se. Disse-se cansado e olhou para a mulher de turbante. Depois olhou para mim e abandonou a mesa. A mulher de turbante sentiu a minha estranheza.
«Ele está num longo processo criativo e não tem energia para os nossos jogos.»
Acendeu um cigarro e, cerrando a boca numa linha séria, soltou uma nuvem de fumo que se enrolou sobre si própria ao subir, desvanecendo-se.
«Ele está a tentar criar conteúdos de vídeo online, mas sem sucesso. Teve umas dificuldades técnicas porque não conseguia carregar um vídeo com mais de 9 horas. Depois, quando o dividiu em partes e o colocou online, ficou surpreendido por ninguém o subscrever. Ninguém quer coisas sérias e longas. Dê-lhes dois minutos sobre como fazer um creme de beleza caseiro com um vegetal qualquer e toda a gente vê; mostre dois indivíduos a fazerem as mesmas caras de parvo durante 5 minutos e toda a gente subscreve; ofereça-lhes nem que seja 1 minuto de uma reflexão séria sobre a barbárie e ninguém lhe pega.»
O ambiente na mesa mudou. De repente, foi como se todos se tivessem lembrado dos seus projetos pessoais. O homem de fato preto e a mulher de perfil grego saudaram-me à distância. O homem dos óculos grossos beijou-me a mão.
«Lembre-se: a existência precede a essência.»
A mulher de turbante abraçou-me e beijou-me na face três vezes.
«Seja generosa. E não se esqueça de nós, não se esqueça de quem nós somos.»
E dei comigo no exterior, sozinha na rua dos Mareantes.
Espera, o Silva está a ligar-me. Já te escrevo.
Corações arrancados
Boris Vian foi músico, poeta, romancista, engenheiro, inventor. Ligado ao surrealismo e ao existencialismo, destacou-se na literatura com obras como A Espuma dos Dias e Outono em Pequim. Amante de Jazz, colaborou com Duke Ellington and Miles Davis.
A mulher de turbante
Simone de Beauvoir foi uma escritora, filósofa e feminista francesa ligada ao existencialismo que desenvolveu reflexões sobre liberdade, identidade e a condição feminina. Na sua obra O Segundo Sexo (1949), analisou a opressão das mulheres e lançou as bases do feminismo contemporâneo. Foi também uma ativista política, envolvida em causas como os direitos das mulheres e a luta contra as injustiças sociais.
A mulher de perfil grego
Juliette Gréco foi uma cantora e actriz francesa que se tornou um ícone da música e da cultura boémia de Paris. Ligada ao existencialismo, Gréco era próxima de intelectuais como Jean-Paul Sartre e Boris Vian, tornando-se a musa da cena artística de Saint-Germain-des-Prés.