Esta foi uma semana de nervos para o Capitão Jackdaw. Notei-lhe o desconforto no andar e no olhar — ansioso por largar amarras, mas com o vento a troçar-lhe dos planos. Uma calmaria persistente manteve-nos em terra firme, quando o que ele mais queria era rumar ao Corvo.
Pelo que fui percebendo, houve uma alteração no plano de viagem. Começo a suspeitar de que há outro mapa — invisível para mim — a traçar a rota do Nómada. Estava previsto seguirmos para as Caraíbas depois dos Açores, e agora vamos para a Nova Escócia. Eu sei… da frigideira para o frigorífico. O mais estranho é que essa mudança aconteceu depois do encontro no Farol dos Capelinhos.
Ao longo da semana, ouvi o Capitão em várias chamadas telefónicas discretas. Não consegui apanhar grande coisa, mas anteontem dois dos outros capitães — o Nemo e o Corto Maltese — passaram pela casa e ficaram a conversar na rua, em voz baixa, quase sussurros. O que apanhei foi pouco, mas suficiente para deixar marca: ouvi o Capitão Nemo exasperar-se com palavras como “perigo” e “trampa”. E do Corto Maltese, a última palavra escapou-me por pouco… “evolução”? “revolução”? Não tenho a certeza, mas posso garantir que estes tipos estão a preparar alguma coisa.
O vento lá decidiu comparecer ontem e preparámos tudo para largar ao raiar do sol. Partimos em direção a uma nova ilha, a mais pequena e remota dos Açores — e, segundo o Capitão, a sua preferida. Não sei se será por causa da ave que lhe dá o nome, ou se é pelo carácter absoluto de insularidade que a define. Lembro-me de ter visto partes de um documentário sobre a Ilha do Corvo: isolamento radical, poucas dezenas de rostos, um só lugar de chegada e de partida. E, ainda assim, pareciam felizes.
É em busca desse isolamento que um outro tripulante se juntou a nós connosco. Para ser mais rigorosa, o objetivo do novo companheiro de viagem, um piloto de aviões, é encontrar-se com uma espécie de ermita que se instalou na ilha há pouco mais de um ano e que terá ganho a reputação de guru espiritual.
«Espero que ele me possa ajudar a fazer a síntese entre aquilo que senti lá em cima e aquilo que sinto aqui preso no solo».
Há um estranho movimento nos olhos do piloto, quase impercetível se não nos concentrarmos no seu olhar, extremamente difícil de caracterizar. Tem a inquietude esgazeada de alguém desnorteado, à procura de algo, e simultaneamente uma fixidez de espanto provocada por um qualquer excesso de estímulo. Vi-o a fungar umas quantas vezes, mas não creio que ele ande ao toque da marcha militar bolivariana, se me faço entender. Falando de militar, essa é a postura que lhe atravessa o corpo, indiferente aos balanços do barco, aparentemente fruto de anos de disciplina marcial.
«Depois de uns anos na Força Área, integrei uma equipa especializada em testar novos aparelhos. Ir além dos limites, puxar o aparelho até perto de nos transformarmos numa bola de fogo em queda livre. Contudo, foi quando me juntei ao esquadrão da meteorologia que a minha vida começou a mudar.»
«Esquadrão da meteorologia?», perguntei.
«Sim. Aqueles aviões que rasgam o céu deixando um trilho branco ao final do dia? Somos nós, a largar as pistas no ar para os meteorologistas fazerem as suas previsões a partir de terra.»
«Bom, percebe-se agora porque é que a tradicional falibilidade dos augúrios subsiste nos dias de hoje. Talvez haja mais sorte nos talhos dos arúspices», ri-me. A minha piada nem sequer foi escutada.
«Que tipo de mudanças?», inquiriu o capitão, o pescoço alongado em curiosidade.
«Não me refiro à rotina, tudo continuava na mesma: fazer a trouxa para uma semana na camarata, uma semana de descanso em casa com a família. Comecei a sentir um distúrbio visual peculiar, permanente e abrangente, a influir no efeito da luz na retina em torno de todos os objetos. Familiares e amigos perceberam que eu já não era quem costumava ser.»
«Rocket man…» traulitei baixinho, mas ninguém ligou.
«O efeito é como se visse tudo em cada coisa, uma aguda consciência do presente e do ausente, da imensidão e do ínfimo e da interligação entre tudo no cosmos»
«The overview effect», murmurou em inglês o capitão.
«Sim», respondeu o piloto. «Preciso de ligar esse efeito àquele que advém do isolamento mais íntimo, não daquele isolamento que sentimos lá em cima. É por essa razão que procuro Abelardo, na esperança de confrontar o particular e o universal, o sim e o não, a dialética da existência»
E depois disto, o silêncio. Que é, na verdade, tão idêntico ao que havia antes de ter chegado, perdida como eu estava na abstração do diálogo. «Efeito da visão geral?», pensei para mim própria. O único efeito que me vinha à cabeça, a pensar no isolamento de um ermita numa ilha remota no meio do Atlântico, era o efeito de cabina. E qualquer um que tenha lido The Shining sabe bem as consequências desse efeito. Arrepiei-me. Escrevo-te mais logo. Acho que não vou pregar olho até chegarmos ao Corvo.
Rocket man
Há quem suba aos céus sem precisar de um foguetão. Há quem esteja em orbita com os pés assentes na terra. Há quem sinta a solidão do espaço no meio da multidão.
The overview effect
Possivelmente traduzido por “efeito da visão geral”, esta ação de mudar de perspetiva deveria ser incorporada no nosso dia, como nos ensinou o inesquecível Mr. Keating. Pode ter um subsequente efeito semântico.
Contra os "Space Invanders"
O compositor e produtor independente Gavin Dunne tem produzido canções de diferentes estilos para jogos e para o puro entretenimento dos seus fãs. “Commander Shepard” foi um dos seus primeiros êxitos.