13. Sic.. et Non

May 28, 2025

«Os corações dos homens e das mulheres são movidos mais por exemplos do que por meras palavras e encontram consolo no testemunho do sofrimento daqueles que, quando comparadas as misérias de uns e outros, merecem mais a nossa compaixão. É por isso que conto sempre o trilho que me trouxe até aqui, para que quem me procura descubra a leveza das suas penas face às minhas tribulações e, dessa forma, possa enfrentar os seus obstáculos com maior facilidade».

Parece tirado de um épico bíblico em technicolor, não parece? Foi com este sermão que o ermita do Corvo nos recebeu — depois de umas breves saudações protocolares, mãos apertadas com a solenidade dos que já não têm pressa e nomes trocados com aquele ar de quem não vai decorar nenhum.

Chamam-lhe Abelardo. E tal como tinha anunciado, começou, sem que ninguém pedisse, a contar a história da sua queda, provavelmente relatada tantas vezes que se tornou prólogo para quem se junta ao retiro.

«Não sou de cá. Nem do campo, nem do mar. Sou um filho da cidade. Há uns anos tinha outro nome — Bel. Nome curto, corpo atlético, presença magnética. Trabalhava nos ginásios de Paris. Dava aulas de tudo: zumba, meditação, alongamentos de chakra e da lombar. Em três meses tinha mais seguidores do que concorrência, e mais pedidos de consulta do que horas no dia.

Vieram depois os convites: programas de televisão, campanhas de roupa desportiva, músicas nas rádios com ritmos que entravam pela anca e subiam até à glote. Deixei de ter tempo para respirar. Era exaustão com batom. Era fama com proteína.

E foi então que conheci a Heloise. Entrou numa das minhas aulas com olhos de mártir e currículo de banqueira. Sobrinha de um tubarão dos supermercados, era uma executiva de topo, moldada nas melhores universidades, treinada para o trono empresarial. Apaixonou-se por mim. Ou pelo que eu representava.

Deixou tudo: cargo, herança, vida. Mandou uma carta de demissão com assinatura em sigla. CU CEO. O tio não achou graça, comprou os ginásios onde eu trabalhava, encomendou um documentário calunioso, e semeou-me de escândalos até já nem saber qual era o verdadeiro. Castrou-me o sucesso.

Casámo-nos em segredo, tentámos resistir. Aceitámos entrar num reality-show, a pensar que podíamos dar a volta à situação, mas não sabíamos jogar. Falávamos de amor e de filosofia, o público queria gritos e drama. Ela ainda citou Aspásia.. e eu pedia-lhe que rezasse no ginásio. Nós éramos… honestos. No final, ela juntou-se a uma ONG e eu vim para o Corvo.»

Fez uma pausa. Encolheu o corpo como quem sente uma dor antiga. Depois recompôs-se e abriu os braços a acolher o novo rebanho de seguidores.

«E agora, aqui estamos neste retiro espiritual para quem quer unir a mente e o corpo e alcançar uma visão holística do mundo que, ao mesmo tempo, é individualista. Eu sei, eu sei… É difícil de explicar, mas tudo passa por duvidar rigorosamente de tudo o que pensamos e fazemos. A chave para a sabedoria é perguntar, constante e frequentemente. Só através da dúvida é que encontramos respostas e nessa procura é que vislumbramos as verdades. Afirmamos algo e depois afirmamos o contrário, dizemos sim e depois dizemos não.»

«E a síntese?», perguntou o capitão, com um brilho travesso nos olhos.

«Para que é que precisa da síntese? Essa  necessidade de encontrar uma essência universal é o erro da nossa sociedade. Esses conceitos sintéticos universalizantes, como humanidade, são apenas nomes, convenções que agrupam indivíduos, mas sem que haja uma essência distribuída por todos. Somos compósitos e ao olhar-nos a nós próprios devemos fazê-lo como quem olha para a Terra do espaço e não do topo de uma montanha.»

Podia jurar que ouvi o piloto dizer “Ámen” a seguir, mas por essa altura já o Bel estava rodeado de um grupo pronto para o treino de fitness da tarde.

«Lembrem-se, intencionalidade é importante, mas a ação é o que conta. Sem ação não há mutação. Vamos mudar essas mentes, vamos mudar esses corpos!»

Subitamente, puxou a túnica branca de linho pela cabeça e ficou de calções de licra e uma t-shirt justa onde se lia “SIC ET NON” em letras maiúsculas. Estava em pé no meio do grupo, que se alinhava na berma da cratera como um conjunto de aspirantes a penitentes. Havia ali corpos de todas as formas e feitios — alguns tonificados, outros francamente moles, todos unidos pela promessa de transcendência muscular e clareza ontológica. O Capitão Jackdaw fez sinal para nos juntarmos a eles. Agora tinha percebido porque é que ele tinha insistido em virmos de fato de treino.

O aquecimento começou com um círculo de olhos fechados e respiração sincronizada. Abelardo — ou “Mestre Bel”, como uma das seguidoras mais entusiastas lhe chamou — guiava-nos com voz serena, como se estivesse a conduzir uma cerimónia xamânica patrocinada por uma marca de águas minerais. «Respirem com intenção… Inspirem o conceito, expirem o preconceito… Sintam os isquiotibiais a abrir como as portas da perceção.» Alguém soltou um riso nervoso, que foi abafado por um «Shhh…» coletivo. Eu mantive os olhos entreabertos, por precaução. Nunca se sabe o que pode acontecer quando se invoca a metafísica em posição de lótus.

Depois vieram os movimentos lentos e circulares dos braços, que Abelardo chamava de “Rondas Epistemológicas”. «Rodem os ombros como quem revê certezas antigas… Mobilizem o trapézio como quem desloca dogmas… Estalem os joelhos com gratidão — o corpo está a lembrar-vos de que são finitos e frágeis.» O grupo acompanhava com obediência quase litúrgica, e por momentos tive a impressão de que estávamos a ensaiar uma peça de teatro experimental sobre a crise da racionalidade ocidental. Ao fundo, o nevoeiro da cratera começava a erguer-se como uma cortina, e o silêncio que antecedeu os exercícios deu lugar a uma espécie de vibração expectante. O espetáculo ia começar.

«Vamos iniciar com o “Contradomínio dos Glúteos”, também conhecido como “Senta-não-senta!”», anunciou, com voz de quem acredita que está em palco. «Flitam os joelhos, empinem o rabo, mantenham o olhar fixo no horizonte como quem encara o absurdo existencial! Isto não é apenas agachamento, isto é confrontar a vacuidade da rotina!»

O grupo obedeceu, em bafos gemidos, com um zelo quase devoto.

«Agora, respirem com intenção. A intenção é tudo. Mais importante do que a forma, mais do que a execução, mais do que os resultados. O juízo moral de um exercício começa sempre na intenção que o anima. Se baixarem os braços por vergonha, não serve. Se apertarem os abdominais por vaidade, estão perdidos. Façam-no por amor! Façam-no por justiça! Façam-no por uma ideia pura do bem!»

Alguém tombou para o lado, mas ninguém interrompeu o movimento.

«Seguimos com o “Silogismo Abdominal”! Deitem-se! Mãos atrás da nuca, cotovelos abertos, e preparem-se: premissa maior — o corpo é o espelho da mente. Premissa menor — a mente está cheia de lixo. Conclusão: abdominar até suar a verdade!»

Os movimentos foram coordenados com grunhidos moderados.

«Não se esqueçam da estrutura lógica dos atos mentais! Cada contração deve corresponder a uma operação interna! Premissa, premissa, conclusão! Insiste, insiste, expira!»

Era quase impossível conter a vontade de rir, mas vi ninguém a desmanchar-se. Alguns estavam já vermelhos como tomates filosóficos, porém era do esforço, não de susterem as gargalhadas. A seriedade do grupo fez-me corar e concentrei-me nos exercícios.

«Agora de pé! Vamos para a “Paradoxa Dinâmica”! Avançam com o pé esquerdo a gritar “Sic!” e recuam com o pé direito a gritar “Non!”»

E exemplificou com passos largos e brados dramáticos.

«SIC! ET NON! SIC! ET NON!»

O grupo imitou-o resoluto.

«Isto é dialética encarnada! Vocês não estão só a exercitar as coxas, estão a treinar a dúvida! Avançar e recuar, aceitar e recusar — este é o movimento fundamental da consciência! A verdade está no intervalo entre os dois passos!»

A cratera ecoava com os gritos compassados.

«SIC!»

«ET NON!»

«SIC!»

«ET NON!»

Uma senhora escorregou e quase caiu de rabo no chão, mas o Abelardo ajudou-a a levantar-se como se fosse um padre a erguer uma fiel no confessionário.

«Agora uma pausa para água e respiração apofática. Imaginem que o ar é um conceito inefável. Inspirei… mas não posso descrevê-lo. Expirei… mas nego o que acabei de sentir. Estamos no coração da teologia negativa, meus queridos. Só através da negação é que nos aproximamos da verdade!»

O piloto, que se tinha posicionado logo de início na fila da frente, com um boné virado ao contrário com a palavra “Intuição” bordada em estilo Stencil, limpava o suor com o antebraço e murmurava para todos: «Ele tem razão. O glúteo também é uma metáfora.» Tinha de me lembrar dessa na próxima vez que desse uma palmada retórica numa bela metáfora.

O Abelardo recomeçou com energia renovada.

«Último exercício: “O Argumento por Absurdos”. Saltos em estrela. Cada salto, uma proposição impossível. Vamos!»

 «O mundo tem forma de pepino!» (salto)

«A alma pesa 21 gramas e tem colesterol!» (salto)

«O destino tem letra ilegível!” (salto)

Quando o ritmo abrandou por exaustão, ele reuniu o grupo em círculo. Estávamos todos estafados, com a respiração descompassada e os olhos num brilho esotérico.

«Lembrem-se: só o movimento gera mutação. Pensar não basta. A fé sem obra é morta. A mente sem glúteo é uma abstracção. Sic…»

«…et non!» responderam todos, em coro.

Foi então que ele pousou as mãos nos joelhos, respirou fundo, e voltou ao tom sacerdotal.

«Agora sim, estão prontos para o silêncio. Para o vazio. Para a travessia interna.»

O grupo aplaudiu com um único estalo de palmas. O piloto fez uma vénia quase cerimonial. Eu e o Capitão levantámo-nos e viemo-nos embora. A custo, é verdade, porque havia ali algo de irresistivelmente absurdo, quase belo, na forma como aqueles corpos tropeçavam entre a comicidade e a revelação.

Regressei à vila em passo lento, com os músculos exaustos e o espírito aos tombos. Estou deitada no quarto, a ouvir o som do vento e a tentar alinhar os meus próprios silogismos. Daqui a uns dias, se o mar deixar, partimos rumo ao oeste. A travessia do Atlântico espera por nós. E eu… estou com medo. Talvez, como dizia o Abelardo, isso seja apenas mais uma forma de dizer “Sim… e Não.”

Boa forma e conteúdo

A relação amorosa com a sua discipula Heloíse trouxe-o à ribalta, mas Abelardo já era uma das principais figuras da filosofia ginástica, debrunçando-se sobre o problema dos universais e do nominalismo.

Música para correr sem parar

O duo britânico de música eletrónica Hybryd, formado por Charlotte e Mike Truman, é um caso de sucesso da música eletrónica e de jogos de computador, que o Abelardo usa, com muito sucesso, para pôr toda a gente a correr.

Sonhos partidos

Gravada em 1969 pela banda australiana Python Lee Jackson com a voz de Rod Stewart – na altura um desconhecido – a canção foi relançada 3 anos depois, quando o cantor Rod Stewart começava a ser famoso. Stewart foi um sucesso, a banda desmembrou-se.

vulcao ilha do corvo

Avisos à navegação

O conteúdo desta publicação é ficcional. As personagens apresentadas são ficcionalizações de figuras reais, pelo que as leitoras não devem assumir que os dados apresentados correspondem a factos reais. O objetivo didático é tentar transmitir algumas das  suas ideias e dos seus conceitos num contexto ficcionalizado e lúdico.