Voltei a ter um episódio como aquele da tatuagem em Setúbal, sem conseguir distinguir sonho de realidade. Só que desta vez não se tratou de lapsos de memória e de saltos no tempo e no espaço: toda a realidade estava alterada, como se tivesse sofrido um ataque de sinestesia total.
Tinha adormecido ao som da discussão dos três tarolas quando um balanço me fez levantar para ver o que se passava. Ao chegar ao convés, fiquei inundada com a cor de vinho tinto do mar dos clássicos gregos e ondas de música pop-rock a planar sobre as águas tranquilas como lençóis amarelos numa brisa gentil. Não estou a ser metafórica: eu conseguia sentir o cheiro a vinho tinto do mar à nossa volta e conseguia ver as ondas amarelas da música. E não era a única.
«Já ouviram o barulho destas nuvens?», repetia Russo de cabeça dobrada a inspecionar o céu.
«E o cheiro delas?», acrescentava Bad Tom, de nariz empinado a abrir as narinas incessantemente. «Cheiram a plantas distantes, poeiras longínquas, terras remotas.»
O capitão parecia estar a divertir-se a observar-nos.
Locky estava fixo na melodia dos lençóis amarelos, tal como eu.
«De onde vem esta música?»
«É dos amigos com quem nos vamos encontrar. Já devem ter emergido e estão a vir na nossa direção. Esta música é o sonar deles.»
Um submarino amarelo surgiu no nosso rumo a poucas dezenas de metros. No convés, na parte superior do casco, três guitarristas e um baterista, vestidos de fato cinza justo, camisa branca e gravata preta, com um corte de cabelo idêntico em forma de tigela, faziam um número musical.
«Devem ser os marinheiros.», pensei. «Mas o que fazem ali a tocar música?»
Na ponte no topo da torre, surgiram duas pessoas, uma delas o Capitão Nemo.
Num instante, os músicos guardaram os instrumentos nos bolsos e prepararam os cabos para que nós atracássemos ao submarino.
«Ahoy!», gritou o Capitão Nemo, acenando do alto da torre.
Senti um calafrio a subir-me pela espinha quanto os marinheiros assentaram uma prancha entre as duas embarcações. E se estivessemos a sofrer uma abordagem em alto-mar? Fomos escoltados para o convés do submarino e descemos para o seu interior por uma escotilha cuja circunferência à largura dos ombros dava a sensação de estarmos a entrar na toca de um coelho.
No interior, cheirava a prados primaveris. A profusão de perfumes de diferentes flores pôs-me a cabeça à roda e percebi pelo olhar e balancear dos restantes companheiros que também eles tinham os sentidos afetados. Os dedos da minha mão direita ergueram-se elevados por uma força que não identifiquei de imediato.
«Caríssima, como tem passado?», perguntou o Capitão Nemo, depois de beijar as costas da minha mão.
Recolhi o braço num gesto defensivo, insegura com as leves tonturas provocadas pelo estímulo excessivo dos sentidos.
«Não se preocupe, essa sensação de enjoo passa num instante. Relaxe e siga os seus sentidos, não tente controlá-los», sugeriu com a voz de um hipnotizador em palco prestes a converter a vítima numa galinha.
«Onde é que estamos? O que se passa aqui?», perguntaram os outros.
«Bem-vindos ao Náutilus, senhores. Considerem-no como o vosso refúgio, um santuário onde se podem libertar dos grilhões da sociedade contemporânea. Ou de qualquer época, se forem essas as circunstâncias.»
Os braços abertos do Capitão Nemo convidavam-nos a olhar em redor. A estrutura do submarino, presumivelmente metálica, estava revestida com recortes de papel celofane com diferentes cores e formas geométricas que mudavam com o movimento do nosso olhar. Os instrumentos de navegação e outros objetos de uso náutico aplicados sobre o revestimento colorido pareciam ter a textura de cogumelos.
«Podem experimentar, são deliciosos.», disse um homem saindo de um túnel. «O John ali não resiste e todas as semanas devora um sextante.», disse, apontando com um movimento do rosto na direção de um dos quatro marinheiros musicais, provocando-lhe um sorriso guloso.
«Eu chamo-me Tim e sou o vosso guia. Venham.», acenou-nos junto a uma escotilha.
Deixámos a sala de comando e caminhámos vagarosamente ao longo de um túnel com traves de suporte feitas de marshmallows com as cores pastel, ciano, rosa e branco entrelaçadas até à cobertura feita de marmelada com pequenos diamantes a cintilarem. Cada passo no passadiço de claras em castelo cozidas em açúcar levantava o som poeirento de um suspiro com um ploc-ploc crocrante que reverberava nas paredes transparentes do túnel. Em ambos os lados, viam-se salas com janelas de sacada para o mar, envidraçadas com glacé de diferentes essências e sabores, e no seu interior grupos de pessoas, algumas delas estranhamente familiares, fixavam os olhos ávidos em écrans de parede.
«São grupos de desaprendizagem vindos dos quatro cantos do mundo.», explicou o capitão.
«O que é que estão a desaprender?»
«A perspetiva da realidade imposta pela sociedade de consumo.», respondeu.
«Então, é uma espécie de lavagem cerebral?», apontei com um tom acusatório.
«Nada disso. Apenas os expomos a estímulos que lhes permitam experienciar outras perspetivas da realidade. A nossa visão do mundo, assim como os significados que lhe damos, é construída através da nossa perceção. Se expandirmos a nossa perceção, podemos alargar o potencial de experienciação positiva da realidade. Há diferentes técnicas disponíveis, da neurolinguística à meditação, passando pela hipnose. Nós preferimos mesclar os sentidos ao ponto de atingirem um estado de comunhão universal que anule o medo. Ultrapassado esse obstáculo, eles podem começar a cultivar novos valores a partir de sentimentos positivos… e assim mudar o mundo.»
O nosso anfitrião abriu os seus olhos caleidoscópicos e parou-nos com um enorme sorriso de gato Cheshire.
«Não há nada que não possa ser feito.»
Semi-ergueu os braços numa pose de apresentador de um misterioso espetáculo mágico, olhou sobre cada um dos ombros e esticou a face para o teto com a expressão de quem saboreia o sopro de uma alucinação colorida numa viagem descapotável no escuro como se recebesse no rosto a luz do sol num dia de inverno.
«Só precisamos de amor.»
As luzes de todos os compartimentos apagaram-se e atrás de nós quatro focos iluminaram com pós de baunilha e de girassol os marinheiros a tocarem uma melodia. As notas musicais saíam da banda em várias direções e começaram a ondular como sereias à nossa volta, formando rastos de arcos-íris numa profusão de cores soterrantes. Progressivamente, a maciez das cores envolveu-me mais e mais, os arcos a roçarem-se em carícias pelo meu corpo ao ocuparem progressivamente mais espaço, até tudo ser um só brilho de cores com o som de um rio a libertar-se de cavernas incomensuráveis, vindo de um mar enterrado sem sol. Abri os olhos e estava no convés do “Nómada” como quem acorda de um sonho vívido subitamente com alguém a bater à porta.
«Onde é que estão todos? Onde está o capitão e os marinheiros do submarino amarelo?»
«Submarino amarelo?», riu-se o capitão Jackdaw. «Não quero soar condescendente, mas é melhor não tomar coisas por alguns tempos… Enquanto você dormia, os nossos tripulantes seguiram com o capitão Nemo, como combinado, num submarino cinzento escuro regular, sem pintas de cor nenhuma. E nós os dois prosseguimos rumo à Nova Escócia.»
Com os sentidos toldados, soergui-me no assento do poço a tentar focar o horizonte. Não vi nada além do mar. Mas pareceu-me escutar vozes ao longe a cantarem “Turn off your mind…”.
A cair pela toca acima
Um fervoroso suíço, defensor irredutível da sua Genebra natal. Um homem de grandes paixões, tornadas públicas nas suas autobiografias, parece viver sempre num de dois extremos, entre o amor e o ódio.
Conhecer sem aprender
A personificação da elegância e da perspicácia de um “english gentleman” com um humor corrosivo. Antes de se tornar um guru político com imenso sucesso nos Estados Unidos, Johnny Locky deu cartas na área do pensamento científico
Somos todos morsas!
Quando o grogue o deixa mais solto, relaxa ao ponto de contar histórias como a do seu nascimento prematuro quando a mãe se acagaçou com a horda de adeptos do Barcelona que espalharam o caos em Inglaterra durante a final da Taça dos Campeões Europeus. Sóbrio, torna-se defensivo e até arrogante.